quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Doutor, divago


Suspiro
Ele queria ter alcançado o ponto de chegada antes de avistar o último vagão sumir naquela curva. Em vez disso, afagou suas costas de longe, deixando a impressão firme e torpe de quem mente sem gaguejar ou transmitir incerteza. Mas ele não mente assim, tampouco desdiz verdades em cartas. Ainda assim, sem mirar seus olhos, falhou.  

Escárnio
“É preciso reconhecer a fragilidade nos olhos daqueles que mentem”, escreveu em letras tortas, prosseguindo mais abaixo: “Não é apenas frieza, é algo mais – uma mistura de cautela e ausência de fé. Chame de descrença alheia, se quiser”. Com esse compasso encerrou no ponto final. Julia sabia que era um texto longo demais para preencher a porta do banheiro do colégio. O que queria era unir mentira à urina e destilar asco, numa juventude oca. Foi um momento triste, guiado pelos passos da desesperança; que teimam em repetir a mesma marcha diária.

Tempo
Cheguei tarde, confesso. Mas o atraso foi proposital, justamente porque não posso te alcançar; jamais.

Sentido
Nessa falsa cegueira, acaricio a nudez fria diante de mim. Um par de olhos murchos, vacilando o reflexo no espelho; um retrato semi-amarelado, sem reparo e sem moldura; que mesmo calado acusa que estou envelhecendo.

Pensamento
Aqui, sentindo nos pés o toque da terra úmida, sei que em instantes vou despertar de um sonho desprovido de sensação. Uma relação de imagens sem foco, incertas. Assim vou descrevê-las, de um jeito confuso, até perdê-las na dúvida da lembrança.

Chance
Lembro dessa manhã pálida de agosto, em que lhe perdi num sonho. Pareceu ser para sempre. Mas você voltou e, mesmo aqui, na outra metade da cama, não consigo te alcançar. 

Beatitude
Tateio o amanhã consciente que irei até onde posso alcançar, porque meus olhos ainda não viram o bastante. Porque eu ainda não sonhei o bastante.