quarta-feira, 28 de maio de 2008

↕ A Mulher Atrás do Muro


A mulher atrás do muro é pudica e se intitula puritana. Morre de medo do avanço e da precocidade da juventude. Esse medo é fruto do seu reflexo diante do espelho, que vem acompanhado com um forte e incontrolável asco toda vez em que se depara com o maracujá de gaveta que suas faces se tornaram. O tal do tempo justifica as rugas e a ausência da cor nos cabelos. A mulher adora achar justificativas, as mais cabíveis se possível. O fato é que para ela, “na sua época” o pudor era mais evidente, e existia. Embora ainda esteja viva, insiste em usar a expressão “na minha época”, como se não vivesse mais em época alguma, como se o tempo tivesse parado. Como se ela estivesse morta e enterrada, embora o coração ainda pulse no peito flácido. Para ela o pudor foi embora, melhor: expulso de mala e cuia, dando lugar ao tal “sexo, drogas e rock´n roll” que leu, horrorizada, rabiscado em enormes letras de forma no caderno da filha. “Pura e doce é a sua menina” que, aliás, adora exibir para as amigas, e faz questão de sempre que possível, estufar o peito e soltar que “foi daquelas ancas que aquela belezura saiu”. Embora zele pelo “correto”, adora pensar sandices, e o faz sempre. Melhor do que pensar ela fala, com uma enorme eficiência, diga-se de passagem. E periodicamente age como se estivesse exibindo a enorme habilidade que possui de falar sandices, e fala, fala: “se minha filha namorar com um cabeludo, eu me mato! Se minha filha transar antes do casamento, eu me mato! Se minha filha colocar brincos na cara, eu me mato! Se minha filha fizer uma tatuagem (para ela tatuagem é coisa de mulher vagabunda), eu me mato! Se minha filha se drogar, eu me mato!”. O prelúdio do suicídio já passou tantas vezes pela sua cabeça, que a coitada esqueceu de viver. O fato é que a sua filhinha doce e pura, até pode ser uma doçura, mas há tempos não tem nenhum vestígio da tal pureza. Todos os tipos de amor devem ser cegos, inclusive o amor materno. E é essa cegueira que a mantém viva, longe dos tais suicídios que tanto se diz capaz de cometer. O grande dilema é que até hoje, não teve nenhuma alma caridosa capaz chacoalhar a mulher e dizer: “minha senhora, o tempo não justifica somente as sua velhice, e da mesma forma que ele passou pra senhora, além do seu muro ele também passou. Levou e trouxe novas eras. Os tempos mudaram”. Ou de um jeito menos cordial: “o mundo vai muito além do que você pode enxergar atrás desse muro. As coisas não são do jeito que senhora pensa que são. Nem do jeito que alguém um dia lhe disse que são! O mundo é grande demais para caber dentro de uma cabecinha tão pequena e retrô, como a sua. E a sua filha minha senhora, anda trepando faz tempo com um roqueiro, e além de ter tatuado na nádega esquerda “all you needs love”, também adora fumar maconha com as amigas. Portanto, guarde suas asneiras num lugar muito bem escondido, e depois tenha um colapso de amnésia e esqueça onde as guardou. E viva! Saia dessa vida medíocre e anacrônica”. Mas ninguém nunca cometeu a proeza de dizer tais palavras para a mulher. Que continua atrás do muro. Que continua vendo o que quer ver. Que continua não vendo nada!

sábado, 3 de maio de 2008

↕ Sempre gostou do frio


Sempre gostou do frio. Sente um arrepio nas costas que há tempos não sentia. Pelo menos não pelo toque sutil do vento. Já tinha esquecido quão embaraçosa era essa sensação. Embora sempre tenha a agradado, houve uma época em que lamentava senti-la. Agora, enquanto corre os olhos atrás do pássaro que de longe a mira, a sente. Por mais que esteja protegida por um emaranhado de panos, aquela sensação de êxtase é envolvida pela sombra da ausência.
A tarde é daquelas que não querem se pôr. Como a do seu aniversário de 24 anos, em que ganhou aquela velha cabana a beira mar. Foi todo o caminho com uma venda nos olhos, ouvindo Vinicius de Moraes. Imaginou todos os presentes cabíveis nos seus sonhos, mas ter a cabana que sempre sonharam, era realmente sonhar demais.
Nunca foi de sonhar. Até quando dorme dificilmente lembra o sonho que teve durante a noite anterior. Essa sua atração pelo frio possivelmente seja pelo fato de ser uma pessoa extremamente gélida. Porém, diante dele mudava. Nunca entendeu o porquê disso. Nunca entendeu o que ele causava nela. Um simples toque da ponta dos seus dedos, como se sua perna fosse o teclado de um piano, bastava para que ela se perdesse nele.
Ao conhecê-lo passou a sonhar. Mas não um sonho individual, eram sonhos recíprocos. E como eles sonharam com aquela cabana na costa sul. A construção era antiga. A mobília resumia-se a uma cama, uma lareira e a pilhas de livros e vinis espalhados pelo chão. Longos foram os dias e tardes sem fim que passaram naquele lugar. Intermináveis foram a caricias trocadas, os poemas escritos e os sonos compartilhados que lá tiveram.
Despertar pela manhã é a hora mais importante do dia. Abrir os olhos, olhar em volta e perceber que tudo está no lugar, como na noite anterior. O despertar na manhã de hoje veio de mãos dadas com uma enorme lacuna. Foi a primeira vez nos últimos anos em que ela acordou sem tê-lo no lado esquerdo da cama. Foi a primeira vez nos últimos anos que não dormiu acolhida pelo seu peito. Essa é a primeira vez que ela vai até a cabana, sozinha.
Tantas foram as vezes que conversaram sobre a morte, ou que ele tentou conversar sobre ela. Em todas ele não hesitava, dizia não tema-la, pois segundo ele, a mesma era a única certeza que tinha diante das incertezas que povoavam suas vidas. Enquanto ele perguntava o porquê do seu receio em morrer, ela nunca olhou nos seus olhos e disse que o seu medo não era de morrer, e sim temia perdê-lo, como perdeu tantas pessoas. Temia voltar a sentir frio.
Agora ela está lá, sentada em uma grande pedra, observando o chocar das ondas nas rochas que circulam a pequena ilha. O vento cortante insiste em lhe embaraçar os cabelos. Ri, ao lembrar das vezes em que ouviu: “você fica linda descabelada!” No meio de tantas lembranças, encontrou a pouco uma carta que um dia ele a escreveu, e enquanto tenta lê-la com dificuldade – pois as lágrimas que insistem em cair, lhe embaçam a visão e dificultam a leitura – sente o seu cheiro.
Nas vezes em que tiveram que ficar longe um do outro, ela fechava os olhos e conseguia sentir seu cheiro, e imediatamente o sentia perto. E agora o faz. E o sente.
Quando ele a tornava um instrumento qualquer, tirando da sua pele infinitas notas musicais que somente os dois conseguiam ouvir, ela sentia um gostoso arrepio. É o mesmo arrepio que lhe inquieta, e a tomou há alguns instantes. De olhos fechados tenta acreditar que o que lhe toca, e causa o tal arrepio, são os seus suaves dedos, e não o vento daquela fria tarde de outono.
O frio, há tempos não o sentia. Longos foram os anos que ela o sentiu constantemente. Breves foram os anos em que ela deixou de senti-lo. E agora ela o sente, e o sentirá para sempre. Exceto quando fechar os olhos e sentir o seu toque, o seu cheiro.
Seus olhos ainda estão fechados. E ela ficará ali por horas, até que o sol se ponha. Porque ela sempre gostou do frio.