quarta-feira, 28 de maio de 2008
↕ A Mulher Atrás do Muro
sábado, 3 de maio de 2008
↕ Sempre gostou do frio
Sempre gostou do frio. Sente um arrepio nas costas que há tempos não sentia. Pelo menos não pelo toque sutil do vento. Já tinha esquecido quão embaraçosa era essa sensação. Embora sempre tenha a agradado, houve uma época em que lamentava senti-la. Agora, enquanto corre os olhos atrás do pássaro que de longe a mira, a sente. Por mais que esteja protegida por um emaranhado de panos, aquela sensação de êxtase é envolvida pela sombra da ausência.
A tarde é daquelas que não querem se pôr. Como a do seu aniversário de 24 anos, em que ganhou aquela velha cabana a beira mar. Foi todo o caminho com uma venda nos olhos, ouvindo Vinicius de Moraes. Imaginou todos os presentes cabíveis nos seus sonhos, mas ter a cabana que sempre sonharam, era realmente sonhar demais.
Nunca foi de sonhar. Até quando dorme dificilmente lembra o sonho que teve durante a noite anterior. Essa sua atração pelo frio possivelmente seja pelo fato de ser uma pessoa extremamente gélida. Porém, diante dele mudava. Nunca entendeu o porquê disso. Nunca entendeu o que ele causava nela. Um simples toque da ponta dos seus dedos, como se sua perna fosse o teclado de um piano, bastava para que ela se perdesse nele.
Ao conhecê-lo passou a sonhar. Mas não um sonho individual, eram sonhos recíprocos. E como eles sonharam com aquela cabana na costa sul. A construção era antiga. A mobília resumia-se a uma cama, uma lareira e a pilhas de livros e vinis espalhados pelo chão. Longos foram os dias e tardes sem fim que passaram naquele lugar. Intermináveis foram a caricias trocadas, os poemas escritos e os sonos compartilhados que lá tiveram.
Despertar pela manhã é a hora mais importante do dia. Abrir os olhos, olhar em volta e perceber que tudo está no lugar, como na noite anterior. O despertar na manhã de hoje veio de mãos dadas com uma enorme lacuna. Foi a primeira vez nos últimos anos em que ela acordou sem tê-lo no lado esquerdo da cama. Foi a primeira vez nos últimos anos que não dormiu acolhida pelo seu peito. Essa é a primeira vez que ela vai até a cabana, sozinha.
Tantas foram as vezes que conversaram sobre a morte, ou que ele tentou conversar sobre ela. Em todas ele não hesitava, dizia não tema-la, pois segundo ele, a mesma era a única certeza que tinha diante das incertezas que povoavam suas vidas. Enquanto ele perguntava o porquê do seu receio em morrer, ela nunca olhou nos seus olhos e disse que o seu medo não era de morrer, e sim temia perdê-lo, como perdeu tantas pessoas. Temia voltar a sentir frio.
Agora ela está lá, sentada em uma grande pedra, observando o chocar das ondas nas rochas que circulam a pequena ilha. O vento cortante insiste em lhe embaraçar os cabelos. Ri, ao lembrar das vezes em que ouviu: “você fica linda descabelada!” No meio de tantas lembranças, encontrou a pouco uma carta que um dia ele a escreveu, e enquanto tenta lê-la com dificuldade – pois as lágrimas que insistem em cair, lhe embaçam a visão e dificultam a leitura – sente o seu cheiro.
Nas vezes em que tiveram que ficar longe um do outro, ela fechava os olhos e conseguia sentir seu cheiro, e imediatamente o sentia perto. E agora o faz. E o sente.
Quando ele a tornava um instrumento qualquer, tirando da sua pele infinitas notas musicais que somente os dois conseguiam ouvir, ela sentia um gostoso arrepio. É o mesmo arrepio que lhe inquieta, e a tomou há alguns instantes. De olhos fechados tenta acreditar que o que lhe toca, e causa o tal arrepio, são os seus suaves dedos, e não o vento daquela fria tarde de outono.
O frio, há tempos não o sentia. Longos foram os anos que ela o sentiu constantemente. Breves foram os anos em que ela deixou de senti-lo. E agora ela o sente, e o sentirá para sempre. Exceto quando fechar os olhos e sentir o seu toque, o seu cheiro.
Seus olhos ainda estão fechados. E ela ficará ali por horas, até que o sol se ponha. Porque ela sempre gostou do frio.