quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

↕ Mártir


O sol acabou de nascer, tem seus raios ainda tímidos e a maré se faz fria. Gosto do gosto salgado do mar, da vida; que arde os olhos e que na boca forma a saliva salgada. Um gosto que quando sentido, consentido, dá sede. Sede de vida!

Sentada na areia úmida na borda do mar, sinto essa sede. Quero beber a vida, a saliva, a tua! Pode ser em um só gole, tipo martini; sem azeitona, prefiro cereja só pra adocicar – mas tem que ser intenso. Afinal, não é de todo mal, apenas às vezes, querer ser doce. Mas continuo preferindo o sal. Quero beber o sal da espuma branca que vem, tranqüila, de braços abertos, calada pedindo um abraço e que se dissipa ao encontrar meus pés.

Maria lembra mar, e vice-versa, como diz a canção. Mas o mar também lembra Marta, que lembra mártir. É por isso que eu gosto do mar – não de praia – e do seu gosto. O mar permite o martírio; traz quietude, plenitude, solidão. Me faz ver, mais nítido do que o hábito, aquilo que o espelho não reflete, e que uns chamam de alma. Almas de outrem.

Agora, o vento morno que beija meus lábios vem, num sopro, de mãos dadas com o leve cheiro de maresia. É como quando estou em casa e sinto o cheiro da chuva – o cheiro da terra amansada que se banha – num dia em que eu sei não ter chovido. Mas o sol, este, sempre vem sagaz; mas como não posso bebê-lo, vem sem gosto. Mas ele queima, inquieta e abrasa, como o amor. Mesmo que este tenha acabado de nascer e seus raios ainda sejam tímidos.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

↕ Tirésias

Ditou para si que o sentir do último suspiro – aquele instante da vida em que sapateiam diante das vistas cansadas, como que em uma regressão, os momentos mais importantes da vida do futuro cadáver em segundos – é exatamente o que sente agora. Então tem que selecionar tais momentos; susto. Não há espelhos, mas de olhos fechados contempla os traços que dizem serem seus; reflexo. Já fez isso em dias de chuva: Deitou na frescura da grama molhada e ficou ali, esperando um raio. Nada veio. Agora, deitada na terra, atirada no chão, o susto perdura. Se dá conta do quanto é pequena; pó. “Tudo não passa de uma viciosa e tortuosa repetição”, balbucia. No peito um coração teima em pulsar e na boca há um gosto de vida. Ela ainda está viva e seus olhos limpos de emoção vêem tudo azul; eu sinto, eu vejo, Narciso!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

↕ Biópsia



por Jozieli Wolff (do nome ruim) e Giancarlo Rufatto (o encrenqueiro)


Na ferroviária de uma cidade qualquer que não esta, a garota de braços cruzados espera um trem para qualquer lugar. A hora pouco importa ou o fato de estar ali há meia hora; por escolha própria foi para a estação bem antes do horário. Dor no peito, garganta seca, uma mistura de falta e vazio. Nada muito importante. Uma sensação aqui, ali, um vento morno passeia – daqueles típicos de novembro e de cidade pequena – e apenas impede que ela se dê conta que cerca de dezessete lágrimas já passaram pelo seu rosto e agora se encontram perfeitamente acomodadas sobre o queixo magrelo. Por enquanto é só.

Homem, terno azul, livros e mala de mão preta. Sete passos e meio atrás da garota do primeiro parágrafo e, assim como ela, também há algumas lágrimas cuidadosamente escondidas atrás das lentes fumes do seu óculos escuro - safra 67. Na verdade todo mundo naquele terminal havia resolvido que chorar era uma boa. As pessoas chegavam, soltavam suas malas, puxavam o lenço e aumentavam coro, a lamuria, a enchente. Então as lágrimas simplesmente deram cria. Enfim, Homem, terno azul, livros e mala de mão preta, agora parece distraído com qualquer coisa. Mentira, ele apenas está tentando desviar os olhos da garota.

Um punhado de terra úmida, pá velha, um caixão – caixa de madeira barata. Aquele som de terra seca sendo remexida ficará gravado na memória do Homem; e serão constantes as vezes que retornarão para o tic-tac das próximas noites, não mais que isso.

É ritual de passagem que haja vela iluminando sua face. Percebe-se o movimento sutil dos seus dedos longos criando notas na mesa que virou um teclado de piano – ela deveria saber que ele faz isso quando está distraído. Ela fala, ele olha vibrado a sua boca e, por isso, não está prestando atenção em suas palavras, mas finge bem o bastante – enquanto corre os olhos pelo seu decote.

O salto fino desliza sobre os paralelepípedos tortos da rua. De cabeça baixa carregando uma mala vermelha ela chega à estação. Veio o caminho todo repetindo baixinho, "Não diz mais nada, não diz mais nada". Enquanto conversavam, ela viu em seus olhos o que mais temia: ele nunca a amaria. Então ela teve que ir embora, mesmo querendo ficar.

Tome nota: soluços, dor no peito, choro. O choro é abafado, as lágrimas se misturaram com os finos pingos de chuva que começaram a cair. Água.

Na ferroviária de uma cidade qualquer que não esta, há um Homem, terno azul, segurando na mão esquerda uma mala e na direita o livro de contos de Bukowski “A garota mais linda da cidade”. Sete passos e meio atrás da garota do primeiro parágrafo e, assim como ela, também há algumas lágrimas cuidadosamente escondidas atrás das lentes fumes do seu óculos escuro. As pessoas na rua olham, ignoram a cena – não seria este o primeiro casal a brigar neste mundo e com certeza não seria o último. Ninguém sabe ainda, mas seus bilhetes são respectivamente 19 e 20 – janela a esquerda e eles deverão descer na mesma estação. O que acontecerá depois disso pouco importa, lembre-se apenas de que o fim é sempre igual: soluços, dor no peito, choro.

domingo, 14 de dezembro de 2008

↕ Aurora

Quantos homens já acordaram pela manhã após ter dormido ao lado “da mulher mais linda do mundo”?

Ela acende uma vela e coloca na janela. Apaga a luz, deita no lugar destinado a ela na cama. O quarto agora está quase escuro, quase. Umbigos nus mirando a lâmpada apagada; a conversa é vaga, digna daquelas feitas pra passar o tempo ínfimo de quem já viu o tempo passar e agora apenas espera. O teto tem seus traços medidos por palmos que insistem em não se desgrudar. As mãos entrelaçadas é um indicio de que o tratado vai começar. “Um contato abstrato de um contrato iniciado”.

Sem muitas delongas decidiram por bem iniciar o ritual. Nada muito novo para ele. Seus lençóis ensebados possuíam as mais diversas fragrâncias agridoces, que repousavam ali duas, nunca mais do que três horas. Depois de se embriagar de salivas alheias, ele entrava numa melancolia sem sentido. Ficava com os olhos vibrados no par de ponteiros do relógio, agonizante, esperando o momento de levar para casa o corpo coberto de nimbo que do seu lado estava em letargia. Só depois que estivesse sozinho na cama poderia, enfim, cessar com a dança das pálpebras, fechar os olhos e dormir. Para ele o dia nunca amanheceu com o outro lado da cama ocupado. Nunca, até aquela noite, havia compartilhado seu sono com uma mulher.

“Eu quero o peso desse fardo. Que ele se torne insustentável. Que me esmague e me prenda contra o chão, como quando o seu corpo está sobre o meu. Que ele me faça encontrar a terra úmida. Só na terra, só nela, cobertos por ela é que encontramos a essência da vida. Pó, poeira. Sem o seu fardo estarei livre, leve, eu sei. Serei leve como uma coisa qualquer, como uma poeira. Uma poeira que voa, voa, à toa. Serei uma poeira de movimentos tão livres, insignificantes”.

Dividir o sono ao lado de alguém para ele era mais comprometedor do que sexo. O roçar dos corpos. Laços entre braços, beijos trocados, línguas, umbigos unidos, caricias, malicias, porra. Ficar nu diante de alguém, pêlos pubianos dividindo o mesmo espaço dos de outrem. Tudo isso era fetiche, o gozo vinha azedo, com blasé, e isso o adocicava. Coito concluído, dormir ao lado de uma mulher era assinar um contrato. Uma sentença, morte na certa.

Ele dormiu ao som daquelas palavras. Pela manhã, ao acordar, tinha na boca seca o leve gosto de um beijo. Olhou para o lado, não havia ninguém. “Boca suja petulante, mentirosa!”, pensou. Na janela havia restos de cera da vela que havia sido acesa na noite anterior. Ele ainda não sabe, mas daqui cinco noites vai começar a acordar ao lado “da mulher mais linda do mundo”. E ele ainda estará vivo. Só agora ele estava vivo; e a aurora anunciava calada que o sol ia nascer.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

↕ Uma frase mal dita. Maldita frase!

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Ontem:

Deu no jornal... Rapaz com idade entre 20 e 24 anos comete suicídio. Branco, pesando aproximadamente 84 quilos, com 1, 78 metros de altura, mais um jovem sem nome foi levado na manhã de ontem para o IML (Instituto Médico Legal) da cidade, onde passou por diversos exames. O jovem sem nome da vez foi encontrado morto pelo zelador do prédio em que morava; na ocasião ele estava nu e tinha um tiro na boca. A data da morte ainda está indefinida.
O velho zelador conta que enquanto se equilibrava no parapeito do edifício para realizar sua atividade trimestral, que é limpar as vidraças dos apartamentos, se deparou com o jovem sem nome deitado no chão da sua pequena cozinha, “ Não é que eu tenha mania de bisbilhotar o interior dos apartamentos dos moradores não moça”. O jovem sem nome que estava nu, tinha no rosto as marcas do ocorrido e no peito uma enorme mancha vermelha, resultado do sangue que saiu da sua cavidade bucal e fez um tortuoso e agonizante percurso; escorreu pelo seu corpo por algum tempo, encontrou seu peito, seus pêlos, seu sexo, seus membros inferiores. Depois do passeio o sangue secou na sua pele, deixando-a com duas cores. Próximo a sua mão direita havia um revolver calibre 38.
Os bombeiros foram chamados; a vizinha do apartamento do andar de baixo começou a desmaiar; outras três a berrar; a mãe, agora viúva de um filho, começou a anunciar que também ia morrer. Ah, não posso esquecer da sindica, esta, coitada, fez de tudo para que a notícia não se espalhasse, mas foi em vão. Em pouco tempo todos os moradores desocupados naquela manhã foram auxiliar os bombeiros – o jovem sem nome parece ser muito querido pelos vizinhos, afinal, todos se mostraram tããããão prestativos, preocupados em saber como, onde, quando, por que, e mais afins sobre a sua triste morte; embora ninguém no prédio soubesse o seu nome.
O jovem sem nome não deixou nenhum bilhete, e por enquanto não mandou nenhuma mensagem do além. Sabe-se de fonte confidencial que na sua mão esquerda se encontrava um passe amassado de ônibus. O pequeno pedaço de papel foi encontrado durante a autopsia e possuía a seguinte frase: “O amor é tomar posse da vida alheia e torná-la suja, triste, nua”. De acordo com familiares a letra não era do jovem sem nome; há quem diga que é letra de mulher. Eu não sei.
O fato é que o jovem sem nome a essa hora já passou pelas cerimônias de empalhamento cabíveis – “descanse em paz”, foi dito em coro. Amém.
Cinco dias atrás:
O vento é gelado e a tarde mais uma vez se fez triste. Não é o céu nublado, os rostos pálidos ou os olhares cálidos de malicia que tornam os dias assim. É o vazio. Os sorrisos estão cada vez mais amarelos; os “bom dia” soam falsos, sussurrados quase que por obrigação; o gozo é consentido, mas não sentido; e, o pior, a poesia perdeu a essência, virou fumaça.
Agora “seu peito dói, e o sol, o sol começa a te envelhecer”, como diz a canção doída de um amigo. Cômico, mas seu rosto de seda carrega dor e a ausência de brilho nos olhos; traços do peso de uma idade que ainda não tem.
Enquanto espera o ônibus das 18 horas ela se pergunta o porquê disso tudo. Olhando a grama ela consegue ver a seguinte cena: gira a chave, abre a porta de casa e diz “olá, cheguei”. Essa hora do dia será deprimente. Não será o fato de chegar em casa que a matará aos poucos – pois sabe que vai adorar a sua casinha amarela com cortinas de onçinha nas janelas. A dor virá quando ela ouvir como resposta o “miaaau” do gato feio e preto que achará na rua e levará para casa, pois, “um bichinho contrai a solidão”, dizem.
E dando continuidade a sua sessão de quiromancia para se distrair enquanto o ônibus não chega, ela se pega no futuro diante de um espelho embaçado. Alguém passou horas em baixo do chuveiro chorando, o que fez com que o vapor tomasse conta do lugar que se perdeu numa neblina. Ela está lá, de olhos fechados se negando enxergar as rugas e a flacidez dos seus seios. E suas noites serão assim, alfajores, gato preto feio, filmes preto e branco”.
“O que é o amor?” pensa consigo. Se distrai um pouco. De repente a resposta vem e ela lê de olhos fechados, “O amor é tomar posse da vida alheia e torná-la suja, triste, nua”. Repete a frase três vezes e resolve anotá-la, pois sua memória é fraca, digna da velha que se tornou. Sem papel, sem gravador – sempre foi uma péssima jornalista. Então resolve anotar a resposta no único papel que possui na carteira: um passe de ônibus – não, ela não tinha dinheiro, aliás nunca tem.
Um ponto azul aparece e fica maior na medida em que se aproxima. O ônibus chega, ela entra. Nesse instante cinco pessoas se amontoam querendo passar juntas numa catraca chinfrim. No meio de sexos e mãos alheias, com asco ela esqueceu da dor, esqueceu do amor e esqueceu do passe. Deu o escrito para o cobrador.
O cobrador, rapaz com idade entre 20 e 24 anos comete suicídio naquela noite. Branco, pesando aproximadamente 84 quilos, com 1, 78 metros de altura, dizem que até que era bonito.
Naquele instante em que a moça passou pela catraca, ele sentiu seu perfume adocicado e sem saber por que olhou o passe amassado vindo dela. Percebeu nele um torto garrancho que dizia, “O amor é tomar posse da vida alheia e torná-la suja, triste, nua”.
No final do expediente enfiou o passe da moça no bolso direito e foi embora a pé, como de costume. Antes parou num bar, encontrou uns amigos. Todos com suas namoradas. A noite cai e suas mãos estão frias. Seguiu seu rumo. Chegou em casa, preparou o jantar, lavou a louca, arrumou a cama, assistiu o jornal, tirou a roupa e se matou.
Antes disso colocou um cd do Nick Drake. Pink, pink, pink, pink, pink moon”, o dono da voz suave que invadiu o lugar também morreu de/por amor e o jovem sem nome sabia disso.
Depois de muito pensar ele fez o que tantos já fizeram. Abriu a boca, apertou as pálpebras e o gatilho; quanto as pálpebras, estas ele não mais abriu. Ficou estirado no chão frio da cozinha do seu apartamentinho por cinco dias, até que o velho zelador o encontrou. Mas agora o jovem sem nome está feliz, pois está sozinho, está puro. Tamanha felicidade é porque ele partiu para uma vida sem dor.
Hoje:
Dessa vez enquanto espera o ônibus azul marinho ela não faz pergunta alguma. Concentrada, lê a seguinte frase de Milan Kundera “são precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras de nossa existência”.
E fazendo jus a lei do eterno retorno que tem em mãos, o ciclo vicioso de todo dia se repete: o ônibus chega, ela sobe, as pessoas se esfregam e ela chega na catraca. Hoje notou que o cobrador não é o mesmo. Teve essa impressão ontem, ou acha que teve, enfim.
Catraca vencida, ela senta no banco de todos os dias, o segundo do lado direito de apenas um lugar – tática para evitar que pessoas sentem do seu lado. Sem saber por que ela decidiu que apenas hoje deixará de fazer perguntas. Eu farei como ela, deixarei de tentar descobrir o que levou o jovem sem nome a dar cabo da própria vida. “Uma pergunta sem resposta é um obstáculo que não pode ser transposto”. Por isso, eu se fosse você faria o mesmo: não queira saber o que é o amor; tampouco se preocupe com pessoas sem nome que amam e morrem por isso. Afinal, tudo irá desaparecer amanhã.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

↕ Amanhã é 26

Eu estou bem. A poça de sangue que cobre os seus pés, formada pelo sangue que dele escorre, não faz jus a tais palavras. Os murmúrios aumentam e a claridade o assusta. A cada minuto o seu “Eu estou bem” soa mais fraco. Ela, inerte, não entende direito o que acontece. Entrelaça as mãozinhas entre o peito, fecha os olhos e reza. Não sabe direito para quem, mas reza, porque um dia ele a ensinou a rezar. Ele a observa, “Como pode ser tão linda, a minha menina”. No mesmo compasso em que o pensamento nele vem, ela abre os olhos e seus olhares se cruzam; nesse instante ele cai. A claridade que há pouco o assustava virou escuridão. O sangue aumenta e cobre o chão do lugar como se fosse um lindo tapete carmim. Enquanto o levam para o hospital, ofegante ele balbucia, “Não me deixem morrer, eu preciso cuidar delas”. Então ela aperta sua mão e olha pela janela do carro; as ruas estão enfeitadas e as pessoas lá fora sorriem, é natal.

sábado, 29 de novembro de 2008

↕ Quando as estrelas começarem a cair

O céu cor de rosa e o sol se pondo eram indícios de que a noite ameaçava chegar. O velocímetro marcava 120km/h. No porta malas haviam lamúrias, sonhos e medos; guardados nas malas de mão daqueles que ocupavam os bancos empoeirados do opala 68 de capô branco e laterais pretas. Resolveram, enfim, ir embora. Um lamuriando o que não fez; Outra o que não pode fazer; E outra por não saber o que fazer; Algumas lágrimas rolaram e se perderam nos buracos da BR. Alguns conselhos tortos e piadas sem graça foram ditas. Horas depois eles perceberam o quanto estão à frente da mesquinhez e do preconceito nojento que paira nas latrinas da cidadezinha conservadora que deixaram quilômetros atrás. Acharam que haviam enlouquecido ou cegado; mas não, são os poucos que ainda enxergam. As horas passaram e eles pegaram a estrada de novo. O carro é estacionado para que nessa hora eles pudessem ouvir o canto da sereia. Mas a sereia era muda. O céu que estava lindo começou a assistir suas estrelas partindo; ia amanhecer. Amanheceu. Ninguém viu. Temeram a profecia que prega sobre a noite em que estrelas começarão a cair. “Quando as estrelas começarem a cair me diz, me diz, pra onde a gente vai fugir?” Todos em coro entraram num consenso, "Vamos voltar pra casa".

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

↕ À luz de velas

Meu bem, o processo consiste em te deixar irritada.

É.

Não faça isso.

Isso o quê?

Isso de falar “é” enquanto aperta as sobrancelhas e faz bico.

Por que?

Porque isso você faz quando está irritada. Isso não é pra você se irritar. Você tem que entender que eu tenho esperança em você, por isso faço o que faço.

Esperança?Spalding? hahaha

Não, tonga. Nada de black powers, por favor. Esperança com ç. Tenho esperança em você porque eu quero que você seja uma mulher fodona um dia.

Me deixa irritada porque quer que eu seja fodona um dia?

Poucas pessoas te colocam a prova como eu, eu sei – você gosta disso. Eu quero que você evolua, e que os jornalistas da capital venham pra cá te entrevistar um dia.

Você é apaixonado por mim.

Não. Na verdade você quer que eu seja. Isso porque você já está apaixonada por mim.

Há-há-há

É sim, não solte essa gargalhada nem faça essa cara de cínica. Nem bico.

Cale a boca.

Você só fala “Cale a boca”, quando sabe que eu tenho razão e por não ter argumentos para contestar.

Pára.

Admita vai. Se você admitir eu juro que retribuo os seus sentimentos. Mas farei isso só porque é meu hobbie.

Seu hobbie é me irritar.

Mas primeiro você tem que parar de usar roupas ripongas, de andar descabelada, de valar feito velha, de ouvir Bossa Nova e de ler romances passados em Minas Gerais.

Chega.

Não se irrite meu bem, prefiro você sorrindo. Te deixo ouvir Beethoven, mas me farei de surdo nessas ocasiões.

Por que você não se faz de mudo e não cala a boca?

Se você continuar assim, você vai morrer velha e solteira. Ou pior, pode morrer num acidente qualquer.

Se for pra morrer em algum acidente, que seja ao menos ouvindo música boa.

Concordo. Fui eu quem lhe disse isso um dia.

É.

É, de novo?

É.

Você é louca; Mas tira fotos legais e faz um bom café.

É.

– E me ama!

– É.

– É?

– Cala a boca!

– Meu Deus, se todas as mulheres forem como você, no meu enterro vai ter uma porção de garotas atormentadas.

domingo, 23 de novembro de 2008

↕ Deu por mim

Certa noite deu por mim um andarilho errante, que com um discurso pedante, com uma respiração arquejante, de mãos calejadas e face pálida, pregou de graça um sermão maçante em forma de oração; excruciante.



“Não temo a morte. Não tenho medo de polícia nem do rabudo. Não temo nada! Prefiro dormir em cemitérios. Muito embora eu não seja pomposo e qualquer obra em construção seja capaz de me aconchegar. Mas ainda assim prefiro deitar minha cabeça em epitáfios. Tenho essa preferência desde guri. Depois do dia em que as covas passaram a guardar minha santa mãezinha tenho ido dormir quase toda a noite ao lado do seu leito. É bem verdade que de santa ela nunca teve nada e que só a canonizei depois que a pobre já estava gélida e morta – tome nota que santo só vira santo se fizer milagre depois de morto!

Mas não se engane pensando que eu sempre fui sozinho no mundo. Depois da minha mãe tive mais duas mulheres. Houve um tempo onde um par de braços morenos, daquela que há muito amei, me acalentavam e me protegiam junto aos seus seios voluptuosos, nos quais eu sugava seu doce suor feito um recém nascido. Deitava minha cabeça junto ao seu peito e entrava num estado de letargia. Foi assim durante muitas noites. Mas esse tempo passou e virou passado. Hoje a morena, assim como a minha santa mãezinha, descansa em uma cova fria qualquer.

Então encontrei outra mulher. Aconteceu que numa noite como esta, enquanto eu andava torto com um litro de pinga em uma mão e um cigarro de paieiro na outra, avistei dentro de um cesto de lixo algo que refletia a cor azul. Cheguei perto e vi a minha santinha – não refiro-me a minha mãe desta vez. O azul era do seu manto de gesso. Suas mãos eram negras e suas vestes brancas. A escultura estaria em perfeito estado, se não fosse por um mísero detalhe: não tinha cabeça. Vasculhei até o fundo do lixo; lembro que quebrei algumas garrafas na afobação de encontrar a tal cabeça, mas foi em vão. Mesmo defeituosa acolhi a santa, pois veja bem: se as demais imagens santificadas nada dizem, esta, por não ter a cabeça que é o membro que acolhe a face e posteriormente a boca que é a encarregada da fala, então a ela dou um desconto! Me convenço, então, que ela não responde não porque “não quer”, mas porque “não pode”.

Então desde aquela noite eu e minha santinha seguimos pela estrada juntos; ela muda e eu descalço. Mas não se encabule, nem arregale esse lindo par de olhos para mim. Não tente adivinhar e buscar adjetivos na tentativa de saber quem eu sou. Entre ser ou não ser, prefiro ser os dois! Mas assim como eu, você nasceu de pés descalços; a diferença é que descalço eu continuo. Mas seja como for, pra que tanta pergunta? Eu que pouco sei ler e escrever conheço muito do tempo e da vida. Eu sei que a estrada que queima a sola dos meus pés e tanto me leva, é a mesma pela qual você caminha. Essa estrada me leva para o mesmo lugar que você há de ir. Pra que tanta pergunta se os meus pés descalços e os seus com sapatos de veludo vão de encontro com os mesmos vermes “na frialdade inorgânica da terra?”. É por isso que eu não temo a morte e prefiro dormir em cemitérios.

Agora, você tem um cigarro aí moça?”

"Máscaras ao meu redor
Eu já não sei o que é víscera ou fumaça

Véus negros que cegam aqueles que enxergam
São anjos sem asas, nem santidade"

domingo, 16 de novembro de 2008

↕ Eu quebrei os meus joelhos



Eu quebrei os meus joelhos,
Pra não poder
Mais rezar
Pra você

Eu quebrei os meus joelhos
Por não querer
Mais chorar
Por você



Meu querido, sei que há tempos não lhe escrevo, entretanto não se iluda; nem pense que eu sinto sua falta. O que o senhor deveria ter feito já fez; que era me ensinar como enterrar meus mortos. Aliás, obrigada! Não espere mais de mim do que esse singelo balbucio de “obrigada”. Fique com suas flores e suas velas e esqueça as minhas preces. Ah sim, ia me esquecendo, estou lhe trazendo hoje um santo de madeira, que a mim de nada serve já que nada diz.
Enfim, desta vez o motivo pelo qual lhe escrevo depois de tantos anos não é em celebração ao dia dos pais ou alguma outra data comemorativa tola. Então não espere desenhos ou poemas infantis. A questão é que, finalmente, encontrei uma maneira de fazer com que o senhor realmente suma. Pois concorde comigo, já que o senhor foi embora por que não desaparece? Sabe, chega doer quando ela olha pra mim procurando o senhor. Estremeço quando encontro em mim traços dessa foto oval que te identifica entre tantos outros.
Sendo assim, vou dar cabo de mim mesma para que finalmente o senhor suma. Viva! Por isso estou lhe escrevendo com um pouco de antecedência, como é de bom tom. Então arrume a casa e separe um bom vinho, em breve vamos poder sentar e conversar. E se prepare, pois eu não sei se o senhor sabe, mas eu quando começo a tagarelar, valha-me Deus, não paro mais. Mas não pense que eu sinto falta disso; estou falando isso por puro interesse, já que vou ter que passar uns dias em sua casa, até me instalar em uma só para mim. Por isso preciso ser educada, você em pouco tempo me ensinou bem isso.
Ah, uma última coisa: esteja bem bonito. Vista aquele terno azul marinho que o senhor foi sepultado e use aquele perfume adocicado. Não lembro o nome, só sei que era aquele verdinho sabe. Não é que eu queira te ver assim elegante, pra mim tanto faz. Mas é que essa é a forma que eu lembro do senhor, então é melhor que assim esteja para que eu não cometa a falha de lhe confundir com outrem. E se possível, mas só se possível, ao me ver diga: minha princesinha. Não lembro da sua voz direito, então isso vai ser bom.
Vale a pena lembrar que eu mudei um bocado. Não venha querer me pegar no colo como era de costume, tanto porque acredito que o senhor não agüentaria. Lembre que não sou mais uma menininha e que agora tenho seios – um belo par de seios diga-se de passagem! Troquei todos os dentes de leite; Caí uns tombos, ganhei algumas cicatrizes, alguns aplausos; e li uns tantos livros e escrevi muitas coisas nesses anos todos que aposto que o senhor nem faça idéia que existam. Ah sim, ainda tenho seu vinil do Nazareth, levarei para ouvirmos juntos.
Bom, por hora é isso. Em breve estarei chegando. Tenho tantas coisas pra perguntar. Prepare-se.

Atenciosamente,
Jozieli Wolff

↕Facínoras

A noite não tem lua e as ruas estão quase vazias, mas ainda há poucos boêmios andando desequilibrados pelas calsadas, lamuriando entre os becos desafinadas modinhas e tocando seus violões. Nota-se que o vinho desconsertou seus passos largos, mas é o vento forte que faz dos boêmios e de seus violões pares que dançam uma desajeitada valsa, na rua que se transformou num salão a céu aberto. Uns não agüentam o peso das pernas capengas e caem, fazendo do chão gélido seu leito. Ao longe é possível ouvir um cachorro que uiva. É um uivo abafado, o cão parece chorar.
Ali perto dentro de um bar qualquer uma vitrola velha está tocando Ray Charles. A iluminação do lugar tem um tom de sépia. Um cheiro adocicado de perfume barato se mistura ao odor de bebida e suor. Cigarros deslizam entre dedos indicadores e médios. A fumaça deixa o local com um ar denso e dificulta a visão. Mas mesmo assim é possível enxergar aqueles quatro rostos pálidos.
Quatro mulheres estão há horas dividindo uma mesa, bebendo e divagando sobre a vida – ou sobre como tirá-la. Pois, convenhamos, fora o confessionário da matriz e o divã de um bom psiquiatra, que outro lugar é o mais adequado para contar pecados e chorar mágoas do que uma mesa de bar?
Essas mulheres não têm nome. Por hora vamos chamá-las de Facínoras. Nas próximas linhas, caro leitor, você saberá o porquê de tal adjetivo.
Sobre o balcão há uma garçonete debruçada. Intrigada, ela tenta ouvir os murmúrios vindos da mesa das quatro mulheres. Mas é em vão. Ela poderia se aproximar da mesa, mas acha que conhece uma das Facínoras; e teme por isso.
Há pouco elas começaram exceder a voz e as palavras ficaram mais claras. A garçonete que está quase cochilando, agora tem um breve sobressalto e desperta, quando começa a ouvir o seguinte:

– David era o meu marido, tinha mania em arrotar. Sentia prazer fazendo aquilo. Cheguei um dia em casa irritada, no meio de uma crise de TPM, precisando de alguém para conversar e ele lá deitado no sofá assistindo futebol, tomando cerveja e arrotando. Ai eu disse: “David, por favor, pare de arrotar...”. E ele fez mais uma vez. Ai não teve jeito, peguei o 38 que ficava escondido na gaveta da cozinha, fui lá e dei dois tiros de alerta nos miolos dele.
– Eu conheci James há três anos num show. Disse pra mim que era solteiro. Transamos, nos apaixonamos, namoramos, casamos, nessa ordem. Até que descobri que de solteiro ele não tinha nada. Não só era casado, como tinha mais 6 esposas. Ai certa noite, ele descobriu que cerveja com arsênico não combinam.
– Já comigo foi diferente. Certa noite eu estava lá preparando o jantar, quando o Eduardo entrou pela cozinha agindo como um louco, gritando: “Sua vagabunda você anda tendo um caso com o vizinho?” Ele gritava e repetia sem parar. “Vagabunda, vagabunda”. Foi quando que, sem querer, ele caiu com o olho esquerdo em cima da minha faca. Caiu em cima dela 20 vezes.
– Ah, eu amava o Fred. Ele era um artista, um guitarrista. Só que ele me dizia que precisava sair toda noite pra “se encontrar”. Pra se encontrar com a Juliane, com a Indianara, com a Jozieli... Mas apesar disso não fui eu quem o matou. Provavelmente foi uma foi uma das amantes dele. Não sei qual, mas quando eu descobrir...
A garçonete que nesse instante serve a mesa, treme. E sem perceber solta o que estava guardando, “Fui eu quem o matou”.


Agora é possível ouvir o uivo do cão outra vez junto com versos desafinados de alguns bêbados que parecem o imitar, fazendo na rua um concerto; Dá para se ouvir também vindo de dentro de um bar qualquer alguns berros de mulheres e copos quebrando. Mas não se assuste pessoa, amanhã cada uma ajuntará seus cacos e irá para casa. Amanhã “chegarão em suas respectivas casas totalmente descabeladas. Se depararão com a moradia vazia e tomarão o resto de cachaça amanhecida que ficou em cima da mesa. Em seguida, fumarão igual Marias Fumaças, sem nem lembrarem mais do que aconteceu na noite anterior”.
Mas guarde segredo sobre o que acabo de lhe contar, digníssimo leitor. Não as denunciem nem as condenem, por favor. A verdade – e tome nota que verdades não são ditas com freqüência, pois sabe-se que ouvi-las não faz muito bem – é que amores entulham as covas dos cemitérios, pois são constantes entre os mortos que temos que enterrar. Afinal, que pessoa nunca assassinou um amor para continuar viva?


Facínoras:


quarta-feira, 17 de setembro de 2008

↕ Maio

Eu quero lembrar da última vez em que senti um beijo com júbilo, sem sentir na boca o gosto da piedade. Lembrar da brisa e do sol morno sobre mim. Lembrar da vela que flamejou a sua última chama até apagar. Lembrar do ramo de orquídeas que murchou até secar. Então o júbilo vem súbito, mas se arma lento. Eu estou aqui inerte esperando o tempo passar, enquanto ouço a minha respiração. No céu, uma nuvem se divide e se faz duas. Dois rostos que se encontraram, se beijaram e se deixaram. Em seguida, do mesmo céu caem finas gotas de chuva – afinal, lágrimas são inevitáveis. Agora fecho os meus olhos e vejo diante de mim peça por peça, um segundo a mais, um segundo a menos. Há também algumas vozes dispersas, e o som dos ponteiros marchando no pulso de alguém bem próximo. Agora o relógio parece cessar. Ah, quem dera se o relógio parado pudesse fazer o tempo parar! Mas este não pára, tampouco volta atrás. O tempo te olha, ri e continua a correr devagar. E enquanto o tempo corre e gargalha diante de mim, eu continuo aqui tentando lembrar, mas já esqueci.

sábado, 30 de agosto de 2008

↕ Carta Póstuma

O quanto tudo mudou. A casa antes agitada se tornou escura, habitada por móveis empoeirados. O quintal há tempos deixou de ser cuidado e as árvores nele estão velhas, secas e sem vida. Inevitavelmente, me vejo igual a este quintal. O amarelo da fachada da casa deu lugar a cor alguma. Nossos livros enfeitam a estante junto aos nossos vinis; objetos cheios de lembrança, que desde que você partiu, não saem do lugar. A verdade é que muita coisa foi esquecida. Mas quando revisito nossas fotografias, reafirmo que a nossa história permanece inteira na minha memória. E se eu fechar os olhos consigo te ver como no primeiro dia, na primeira vez; e lembrar de cada momento. Nos últimos anos, suas mãos estavam tão cansadas, seu rosto flácido e os cabelos perderam a cor. Porém, você continuava linda. Quando fecho os olhos a noite, esperando que a morte venha me buscar, sinto um leve peso sobre mim. Nesses instantes tenho a impressão de que você está ali, dormindo em meu peito. Sabe, queria poder voltar no tempo, quando eu, com zelo, ainda podia lhe proteger. E então eu balbucio baixinho: volta pra casa. Mas você não vem. E agora a casa está vazia, mas o teu cheiro continua aqui.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

↕ O pecado

Ele foi um sonhador. Uso termos no passado, não somente pelo fato da foto que tenho em mãos ser antiga, mas por ele já ter morrido. Estarei pecando por falar sobre alguém que não pode fazer uma réplica? Pecado para mim, é morrer antes de realizar seus sonhos então pecador aqui, somente o falecido.
Ele sonhava, e como sonhava. Talvez no exato momento da foto estivesse pensando algo do tipo, "Ah, serei um grande jogador de futebol" – o que é comum em garotos de 10, 11 anos. A maioria não se torna um. E no lugar aonde a hipocrisia leva flores nos funerais, e o pecado é o protagonista do espetáculo chamado “vida”, a maioria das pessoas morre antes de conquistar seus sonhos, é fato. Outros tantos porém, vacilam a vida toda, e antes de se tornarem adubo, há muito tempo já estão mortos pois não se dão ao luxo de sonhar.
Ele cresceu, e antes que a morte o buscasse vieram outros sonhos. Foi inevitável, ele cometeu o pecado de se deixar apaixonar pela moça que conheceu no cemitério, no enterro do seu pai. Ela morava numa casa cujo muro fazia divisa com o cemitério. Foi num dia de setembro que ela ouviu um choro abafado, e com dificuldade empilhou uns caixotes e na ponta dos dedos do pé conseguiu presenciar a dor alheia. Ele estava lá, debruçado sobre um túmulo azul, conversando com alguém que já não podia responder.
Um café. Foi o que ela ofereceu a ele. Um tempo depois, casaram-se e uma filha tiveram. Ele construiu um castelo, e nele colocou a sua rainha e a sua princesinha. Princesa, era assim que ele a chamava. Para ela, ele queria dar o mundo, mas do mundo ele foi tirado.
E num dia de dezembro, foi justo pela sua princesinha que ele chamou, e pediu enquanto agonizava: "cuidem dela pra mim". Talvez pelo fato de pensar nela enquanto a morte o carregava no colo, ele tenha se deixado levar. Talvez se distraiu, e por isso "se deixou" partir. Talvez a culpa seja dela. Talvez esse tenha sido o seu pior pecado.
Dela, alguém cuidou. Para ela, o mundo não foi dado. Para ela restaram somente as fotos desbotadas e seus discos do Nazareth. As fotos não permitem que ele se perca na sua memória, e se torne mais uma das tantas coisas que ela já esqueceu. As músicas o trazem para perto.
E então como uma herança, ela passou a praticar o pecado. Peca por não admitir que sente na boca o gosto azedo da saudade. Peca toda vez que anda na rua, e começa a mirar rostos estranhos na tentativa de desenhar como ele seria hoje. Peca por tentar adivinhar quais eram os seus sonhos, e por nunca ter perguntado quais eram, enquanto ele ainda estava aqui. Peca por sonhar.
Ela sonha, e como sonha. Ela sabe que o tempo é curto. Ela teme deixar que o tempo passe. Teme virar apenas lembrança, de uma fotografia desbotada esquecida no fundo de uma gaveta qualquer. Teme amar tanto uma pessoa, a ponto de se distrair e partir antes de conquistar seus sonhos. Teme ser mais uma pecadora. Teme pecar. Mas continua pecando.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Ela está ali. Vento no rosto, os braços abertos como quem espera um abraço. No mesmo compasso que abraça o vazio, ela olha para cima, para o céu. Fica assim o tempo todo. Às vezes chove, às vezes o sol se faz rei, e tudo faz. Às vezes a chuva lhe pesa nos ombros e a faz capengar. Às vezes os raios de sol são tão intensos, que ela vai secando com o estio, e qualquer vento a dispersa, como agora. Hoje, certamente ela é um grão de areia. Mas agora ela é eterna.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

↕ As três semanas da Dona Maria

Nota: A insensibilidade e a facilidade notória de fazer fofoca existente nos homens, foram enfatizadas, salientadas, frisadas, ressaltadas, destacadas e escancaradas, no diálogo a seguir:



J Boicotaram nosso café!

K– Sim, bem hoje que tem chá de abacaxi.

L – É que a Dona Maria não veio trabalhar hoje.

J – Não sei. Só sei que boicotaram nosso café!

K– Ah, é. Por que será?

L – Ela não anda muito bem. É que o marido largou dela.

J – Puta merda, sério?

K – Coitada!

L – Sim. É que ele arrumou outra.

J – Coitada.

K – Sério?

L – Sim. Na verdade o marido dela é um vagabundo. Não trabalhava não fazia nada. A Dona Maria dava tudo pra ele, dava tudo pra ele!! (sim, essa afirmação foi repetida duas vezes, como está descrita aqui). Ela trabalhava o dia todo, enquanto ele ficava sozinho em casa. Nesse espaço de tempo, ele arrumou outra. Ele levava a outra pra dentro de casa, e ainda cometia orgias com ela na cama da Dona Maria.

J – Mas isso é nornal gente. Eu não me espanto.

K – Eu quando acabei o meu namoro, fiquei um mês de luto.

L – Calma, depois vocês choram as mágoas de vocês. Eu ainda não acabei! O pior vocês não sabem: ele ainda disse pra ela que ela era uma vagabunda, e que não fazia nada em casa!

J – Tá, mas como você sabe de tudo isso?

K – É, como você sabe de tudo isso?

L – Ah, contaram pro Japonês, e o Japonês me contou ...

J – (risos)

K – (risos)

L – Ah gente, mas ele largou dela já faz tempo.

J – Ah, e ela passa mal agora! E o nosso café? Tá, mas faz quanto tempo?

K – É, faz quanto tempo?

L – Ah, faz tempo. Umas três semanas.



J – E a estória continuaria, mas os meus risos abafados me causam um certo desconforto, e me impedem de prosseguir. Então pararei por aqui.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

↕ Clarice

Não me olhe assim. Ao olhar nos olhos de alguém, podemos deixar o outro vulnerável, pois entramos em contato com o que há de mais frágil e fétido em uma pessoa: a sua alma. Muito embora ela devesse temer os momentos que estavam por vir, ela não o fez. Como prestes a gozar, ela se deixou olhar no fundo dos seus olhos. Entretanto, nada que já não fosse de conhecimento público foi descoberto. Ao olhar em seus olhos ela viu refletido no espelho, o quanto é covarde.
Então na tentativa de fugir de si mesma, sai da frente do espelho emoldurado na parede verde da sala. Passou quase uma hora ali, parada, mirando-se. Mas a resposta não veio. Tentava responder a pergunta que chegou há pouco com um buquê de flores vermelhas. Talvez a resposta venha com uma xícara de café.
Sete horas em ponto. Um rapaz de uniforme azul aconchega levemente um buquê de rosas vermelhas entre seus braços. E antes que os espirros viessem à tona, ela lê no cartão a seguinte pergunta, “Por que você fuma?” O dono do garrancho ainda reforçou a sua intenção de censura, só que agora com uma afirmação, “Você sabe que isso mata.”
É incrível a avareza humana. Constantemente fazemos coisas que nos matam, sem nos darmos conta de tal façanha. O mal caminha de mãos dadas com qualquer pessoa, é fato. Se não fazemos mal a nós mesmos, então fazemos aos outros. Ela, pra não fazer mal aos outros, faz a si mesma. Na verdade, acredito que ela não seja capaz de fazer mal a ninguém, pois tampouco é capaz de fazer algum tipo de bem. Então reverte toda causa e efeito, para si.
Poucos sabem, mas a família de qual viera tinha uma crença de que, “A mulher ao dar a luz tem a saúde revigorada”. Deve ser coisa de quem acredita em Deus. Sua mãe, que sofria dos nervos desde o nascimento da segunda filha, piorava a cada dia. Então, enquanto se formava no ventre daquela a qual intitulavam “louca”, o peso de devolver o discernimento e a lucidez àquela mulher – e a função de lhe tapar os olhos e os ouvidos para que deixasse de ver e ouvir o que ninguém mais via ou ouvia – a ela foi dado de presente. Lhe aconchegaram a tal missão no colo, da mesma forma em que aconteceu minutos atrás, quando recebeu as tais flores.
Entretanto, tal esmero foi em vão – como todas as coisas que cabem a ela, o resultado é sempre em vão. Aconteceu que ao nascer, a mãe não quis a ver. Temia, gritava, toda vez que aproximavam a menina dela. Bom, isso ela não sabe, pois ainda era muito nova quando tal espetáculo acontecia. Por fim, sete anos após a cura ter nascido, a enferma morre. Ela foi perdoada pela família, mas nunca se perdoou.
Sendo assim, por não ter conseguido salvar a vida da progenitora, toma nota e decide dar cabo da sua. Foi esse o pensamento que acabou de ter, enquanto com certo blasé, em silêncio prepara seu café. E no primeiro gole, descobre que peca, “Peco por gostar do gosto azedo da solidão.” Afinal, o vazio do silêncio sempre esteve ao seu lado. Enfim, conclui que o que comete consigo é um suicídio, em parcelas. “Melhor do que se jogar da janela.”
Sente que vai voltar a espirrar, então lembra das flores. Agora, enquanto segura a dúzia de rosas vermelhas, descobre que o que faz a cada dia é dar um passo em direção ao beijo da morte, e que nunca foi, nem nunca será mulher de flores, “É nunca serei mulher para ganhar flores, preferia um maço de cigarros, deles não tenho alergia. Não as quero nem no meu funeral. Velas e flores quando juntas formam um odor nada agradável."
Finalmente jogou as flores no lixo. Em seguida, pegou um vinil da Janis, e fez com que na vitrola velha A Woman Left Lonely começasse a ser cantada. Acendeu um cigarro, e terminou de tomar o café, que agora estava frio.





A woman left lonely will soon grow tired of waiting,
Boomp3.com










domingo, 17 de agosto de 2008

↕ Blackbird, fly

A língua secreta dos pássaros é um dialeto falado por poucos. Sorte de quem o fala. Sorte de quem o entende. Sorte tenho eu, por ter você pra me ouvir e fazer companhia: o silêncio.


domingo, 27 de julho de 2008

↕ Se o amor tivesse um cheiro, qual seria?

Um lápis preto tem a ponta afinada. A folha sobre a mesa, continua lá, em branco. Agora, algumas dezenas de círculos sem nexo são feitos sobre ela. Porém, nenhum garrancho torto capaz de responder qual seria o tal odor do amor, é formado. Talvez a folha continue nua porque não se pode escrever sobre o que desconhece.

Embora a solidão seja algo divino, e eu prefira a suave melodia do silêncio como companhia, nesse momento de total solidão eu vegeto. Suporto qualquer ausência, menos a dela. Em momentos como esse em que a inspiração me deixa, eu morro. Hoje eu estou morta. Minhas mortes podem perdurar dias, semanas, meses. São períodos de tortura, em que os papeis continuam em branco e o simples fato de se olhar no espelho causa asco. É quando a vida se torna oca, e eu me canso de viver, então padeço. Hoje estou cansada, não triste. Cansada e vegetando, sem achar a tal resposta.

Da janela vejo você na cafeteria da esquina. Cabisbaixo, mirando o que eu acredito ser uma xícara de café. Então, no mesmo compasso em que lembro de que estou atrasada, lembrei da vez em que me viu nua, e das vezes em que pude sentir o cheiro do amor. Agora de olhos fechados posso sentir. É um odor enjoativo, uma mistura de mentiras e mel. Sim, você me ensinou há muito tempo que o amor é composto por áridas mentiras, e é adocicado pelo mel. Mentiras e mel quando juntos formam algo comparado com o caos. Amor é caos. O amor tem cheiro de caos! Sendo assim, o amor tem o teu cheiro. O cheiro daquele homem ali, de terno azul, com os braços cruzados e sem dinheiro.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

↕ Flores, vísceras e cinzas

Flores
Você está ai. Os mesmos olhos que ontem me fitavam e condenavam, agora estão selados. O rosto antes levemente corado, agora é tomado por uma enorme palidez. A boca agora gélida e imóvel, nem de longe parece ser a mesma que ao fechar os olhos consigo sentir quão ardente era quando encontrava os meus lábios. Sua mão pequena, agora se faz entrelaçada sobre o seu ventre, enrijecida e fria.
Lembro da primeira vez em que toquei no seu rosto. Da primeira vez que a beijei ao som de uma música qualquer. Da primeira vez que me deixou guiá-la pela mão. Mas mesmo aqui, parado diante de ti nesse caixão, continuo com a mesma sensação e crédulo de que somente o teu peito junto ao meu, é capaz de criar um calor que facilmente acabaria com o vazio que carrego comigo agora, e o frio que sinto ao tocá-la. Lembro de tanta coisa querida. Só não lembro de ter dito que a amava. Desculpe se sempre fui tolo. Mas hoje lhe digo: “Eu amo você”.

Vísceras
A gente passa a vida inteira acuado pelo medo, quer ver?
A gente só faz reclamar, com medo de se acomodar. A gente ouve música doída enquanto chora mágoas, com medo de gargalhar. A gente não pisa na terra descalço, com medo de se sujar. A gente não sente a chuva tocando nosso corpo – como um homem nos guiando por algum salão ao som de um jazz qualquer – com medo de ser intitulado “anormal”. A gente não sente o vento, com medo do frio. A gente não tenta, com medo de conseguir. A gente não grita, com medo de gostar e repetir a dose. A gente anda na rua sem olhar pros lados, com medo de ser desmascarado. A gente não sabe amar – não sabe amar a família, os amigos, o cachorro. A gente causa mal a nós mesmos, com medo de causar aos outros. A gente passa a vida com cautela, com medo de se arriscar no abismo. E por fim, a gente deixa pra sentir o quanto ama alguém somente quando a pessoa vai embora, por medo de se declarar e ouvir um “eu também te amo”.

Cinzas
Hoje eu sou um amontoado de medos, vísceras, cinzas e flores. Tirando as cinzas e as flores com aroma enjoativo, você é igual a mim. Quanto a você querido, esse seu “eu te amo”, muito embora perto, ecoa longe. E digo mais, se fosse pra dizer que me ama no meu funeral, continuasse calado, seria melhor. Mas pegue um punhado de mim agora, coloque naquele seu cinzeiro colorido, e misture as minhas cinzas com as do seu cigarro. Assim, continuarei na sala, recebendo seus convidados, enquanto o seu amor e o seu luto perdurarem – o que será por poucos dias.