sexta-feira, 29 de agosto de 2008

↕ O pecado

Ele foi um sonhador. Uso termos no passado, não somente pelo fato da foto que tenho em mãos ser antiga, mas por ele já ter morrido. Estarei pecando por falar sobre alguém que não pode fazer uma réplica? Pecado para mim, é morrer antes de realizar seus sonhos então pecador aqui, somente o falecido.
Ele sonhava, e como sonhava. Talvez no exato momento da foto estivesse pensando algo do tipo, "Ah, serei um grande jogador de futebol" – o que é comum em garotos de 10, 11 anos. A maioria não se torna um. E no lugar aonde a hipocrisia leva flores nos funerais, e o pecado é o protagonista do espetáculo chamado “vida”, a maioria das pessoas morre antes de conquistar seus sonhos, é fato. Outros tantos porém, vacilam a vida toda, e antes de se tornarem adubo, há muito tempo já estão mortos pois não se dão ao luxo de sonhar.
Ele cresceu, e antes que a morte o buscasse vieram outros sonhos. Foi inevitável, ele cometeu o pecado de se deixar apaixonar pela moça que conheceu no cemitério, no enterro do seu pai. Ela morava numa casa cujo muro fazia divisa com o cemitério. Foi num dia de setembro que ela ouviu um choro abafado, e com dificuldade empilhou uns caixotes e na ponta dos dedos do pé conseguiu presenciar a dor alheia. Ele estava lá, debruçado sobre um túmulo azul, conversando com alguém que já não podia responder.
Um café. Foi o que ela ofereceu a ele. Um tempo depois, casaram-se e uma filha tiveram. Ele construiu um castelo, e nele colocou a sua rainha e a sua princesinha. Princesa, era assim que ele a chamava. Para ela, ele queria dar o mundo, mas do mundo ele foi tirado.
E num dia de dezembro, foi justo pela sua princesinha que ele chamou, e pediu enquanto agonizava: "cuidem dela pra mim". Talvez pelo fato de pensar nela enquanto a morte o carregava no colo, ele tenha se deixado levar. Talvez se distraiu, e por isso "se deixou" partir. Talvez a culpa seja dela. Talvez esse tenha sido o seu pior pecado.
Dela, alguém cuidou. Para ela, o mundo não foi dado. Para ela restaram somente as fotos desbotadas e seus discos do Nazareth. As fotos não permitem que ele se perca na sua memória, e se torne mais uma das tantas coisas que ela já esqueceu. As músicas o trazem para perto.
E então como uma herança, ela passou a praticar o pecado. Peca por não admitir que sente na boca o gosto azedo da saudade. Peca toda vez que anda na rua, e começa a mirar rostos estranhos na tentativa de desenhar como ele seria hoje. Peca por tentar adivinhar quais eram os seus sonhos, e por nunca ter perguntado quais eram, enquanto ele ainda estava aqui. Peca por sonhar.
Ela sonha, e como sonha. Ela sabe que o tempo é curto. Ela teme deixar que o tempo passe. Teme virar apenas lembrança, de uma fotografia desbotada esquecida no fundo de uma gaveta qualquer. Teme amar tanto uma pessoa, a ponto de se distrair e partir antes de conquistar seus sonhos. Teme ser mais uma pecadora. Teme pecar. Mas continua pecando.

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