A partir de 1964, a resistência ao sistema
ditatorial brasileiro inspirou canções, poemas e, numa mistura de audácia e
coragem, foi tema de filmes produzidos em pleno regime. É o caso de “Terra em transe”,
filme de Glauber Rocha, lançado em 1967, período em que o regime militar atuava
com agressividade, principalmente contra a liberdade de expressão. Mas entre
fatos e personagens de ficção, estão personalidades reais, que possivelmente
inspiraram os roteiros cinematográficos. Um desses nomes foi Carlos Marighella,
poeta filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCB), que chegou a ser
considerado o principal inimigo da ditadura brasileira. Assim, o ativismo civil
motivado pelo anseio em combater a ditadura está presente tanto em “Terra em transe”,
quanto no documentário “Marighella: retrato falado do guerrilheiro”, de 2001,
dirigido por Silvio Tendler.
Durante a ditadura, contestar era preciso,
mas quase impossível em virtude da censura e das represálias. Nesse cenário, o
Cinema Novo, as demais manifestações artísticas, assim como a imprensa
alternativa, foram mecanismos utilizados por intelectuais da época para
disseminar a resistência política. A subjetividade era a principal ferramenta
para transmitir tal posicionamento. “Terra em transe” é pura subjetividade,
ideologia e alusão. Retrata um país fictício, chamado Eldorado, que por vezes
lembra o Brasil. Por lá, articulações e manobras políticas garantem os
interesses de poucos, onde o povo continua convivendo com mazelas sociais como
pobreza e injustiça.
O filme de Glauber Rocha conta a história
de Paulo Martins (Jardel Filho), um poeta com ideologias revolucionárias, que
corta laços com o senador Porfírio Diaz (Paulo Autran) e sua amante, Silvia (Danuza
Leão) – mulher que, ao manter uma relação amorosa com Paulo, simboliza a
máquina capitalista. Após o rompimento, Paulo passa a se dedicar a um jornal
independente, onde conhece Sara (Glauce Rocha) – personagem que representa o
desejo pela revolução e resistência política. Dessa relação com Sara, Paulo
passa a acreditar que a política é o único meio de ajudar a população, através
da eleição de um político popular: Felipe Vieira (José Lewgoy), eleito governador.
Contudo, Vieira se mostra um homem fraco, manipulável e, embora tenha vencido
as eleições à presidência do país, renuncia o cargo em virtude de um Golpe de
Estado realizado por Porfírio Diaz, que almejava “a ordem imposta pela força”.
A história também traz um magnata da comunicação, Júlio Fuentes (Paulo Gracindo),
que usa a sua emissora de TV para transmitir informações políticas de acordo
com interesses financeiros.
Difícil não associar a abordagem de “Terra
em transe” com a história política do Brasil. Em 1930, um Golpe de Estado garantiu
a Getúlio Vargas a presidência do país, derrubando o então presidente eleito
Julio Prestes. Em 1964, outro golpe destituiria João Goulart do cargo de
presidente do país, dando início a uma ditadura militar que duraria 21 anos. Sabe-se
que durante o período ditatorial brasileiro na década de 1960, os veículos
ligados a grande imprensa não contestavam, tampouco denunciavam as ações do
regime – atitude guiada pela censura prévia ou, talvez, por interesses econômicos.
Também não é incomum em nossa história a inserção na política de pessoas
contrárias ao Estado – fica a dúvida se essa inserção se deu pelo desejo de
justiça social ou pelo anseio de poder. Assim como Paulo, Carlos Marighella
também era poeta e se engajou em ações de resistência política contra a
ditadura militar. Chegou a ser eleito deputado em 1946, permanecendo na câmara
até seu mandado ser destituído, assim como ocorreu com todos os eleitos pela
sigla do PCB, em 1948.
O documentário sobre a vida de Marighella
mostra o engajamento do “mulato baiano” no comunismo, bem como a sua vida na
clandestinidade, já que seu nome estava na lista dos procurados pela polícia. Depoimentos
da esposa, Clara Charf, colegas e partidários do PCB remontam sua trajetória
política na “extrema-esquerda”. O filme retrata a sua participação nas ações do
PCB para derrubar o regime militar na década de 1960, bem como durante o Estado
Novo. Também aparece o seu posicionamento diante a luta armada engajada pelos
movimentos de resistência – alguns dizem que Marighella teria sido contrário,
outros alegam que ele foi a favor.
Todavia, o documentário também evidencia
que a luta armada – promovida por membros da esquerda e inserida nos movimentos
estudantis – realizou ações pontuais, emblemáticas, como o domínio da Rádio
Nacional e o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. Porém, essas
mobilizações não ganharam representatividade política, tampouco conseguiram
intimidar o governo. Assim, “Marighella:
retrato falado do guerrilheiro” mostra que a organização e a força do Estado,
principalmente a partir do AI-5, instaurado em 1968, conseguiram coibir as ações
de resistência estimuladas pelo partido comunista. Como resultado, nasceu o sentimento
de conformidade diante a situação política e social do país.
Nas palavras de Marighella, “o conformismo
é a morte”. Essa falta de esperança
diante o autoritarismo da ditadura, criticada por Marighella, também atingiu o
personagem Paulo em determinado momento de “Terra em transe”. Glauber retratou
a mesma juventude que galgava por mudança, agora desmotivada, onde mil notícias
amargas definiam o mundo e, da adolescência, só restava a dor, em que a poesia
perdeu o sentido e as palavras se tornaram inúteis*.
Os filmes também possibilitam o
questionamento quanto ao posicionamento de seus protagonistas. Há o momento em
que é difícil decifrar se as atitudes de Paulo foram em prol do povo ou motivadas
por egoísmo. Também fica a dúvida se
Marighella queria o fim do regime ditatorial ou o início da ditadura
comunista.
Todavia, Marighella faleceu em 1969, dois
anos após o lançamento de “Terra em transe”. Talvez tenha assistido ao filme,
bem como a cena em que Paulo morre, em um tiroteio, enquanto dirigia um fusca.
Marighella morreu praticamente da mesma forma; foi baleado dentro de um fusca.
Ambos, o personagem de Glauber e o ativista real, foram vítimas da ideologia
que tentavam combater.
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