domingo, 1 de janeiro de 2017

O ano dos pássaros

Admiro os pássaros que, apressados, contornam a torre da matriz. Nos finais de tarde, com o céu pincelado por tons de fogo, eles rodopiam no ar em perfeita harmonia. São habilidosos, ágeis na dança de poucos admiradores. Afinal, é cada vez mais raro olharmos para o céu. A não ser para reclamarmos do humor do tempo, do calor, da chuva, do frio, do vento. Nada está bom. Nunca.
Diante de um mundo que só faz reclamar, eu, admiro os pássaros. Questiono a vida miúda que pulsa aparentemente sem cambalear dentro deles, apesar do ritmo acelerado do bater de asas; tudo é tão breve, quanto um piscar de olhos. De repente, mais que de repente, eles morrem. Ficam ali, no chão, perto do chafariz. No céu, tudo igual: a dança frenética recomeça, sem nenhum sinal de luto.
Tudo é tão furtivo e intenso, como um ciclo tortuoso que, enfim, termina. Que alívio, acabou. Mas, será que terminou mesmo? A verdade é que o tempo não passa, quem passa somos nós. Por isso, não trata-se de finitude e, sim, de recomeço.
As andorinhas que me fizeram iniciar esse texto, continuam fazendo alarde em meio ao bando porque precisam anunciar a nova estação, o novo dia, o novo ano, o recomeço. Não podem parar. Juntas, par em par, elas sobrevivem.
Enquanto observo o grupo que movimenta o céu e se despede de dezembro, me pergunto: quantas vezes eu teimei ser mais forte sozinha? Inúmeras. Então, me visto de torre de igreja e lembro das pessoas que me rodeiam; dos poucos e valiosos amigos, do amor e zelo da minha família. Do amor. Reconheço que encerro mais um ciclo graças à força deles.
Ainda aqui, na quietude do entardecer, agradeço. Quem sabe amanhã ainda haja tempo de vislumbrar a vida que paira no céu – e que daqui, da janela que emoldura o novo, eu possa viver mais 365 auroras, guiada pelo ensinamento valioso dos pássaros.

sábado, 12 de novembro de 2016

Apresse a prece

Deus, não permita que eu esqueça de onde vim, quem eu sou e porque estou aqui. Não permita que eu esqueça dos dias difíceis, do choro abafado ou da mobília que estragou com a chuva. Nem das vezes em que eu persegui meus sonhos enquanto o mundo dormia. Ou das manhãs em que vi a aurora, não por contemplação, mas por sobrevivência. Tampouco das vezes que me vi perdida dentro do abismo criado por mim. Ou das vezes que temi diante do novo. Nunca, jamais, me deixe desistir por medo! Não permita que o conformismo me acomode ou deixe de me incomodar. Não deixe que eu adie o abraço apertado ou o "eu te amo" mais sincero. O mais importante: por favor, não tire de mim o olhar que mira o céu, o rosto que sente o vento, o peito que pesa por se emocionar diante da vida. Que eu nunca deixe de sentir compaixão. E se eu despertar pela manhã sem agradecer por mais um dia, me mande um alerta! Que o reflexo no espelho me lembre que eu sou inteiramente grão. E quando eu for brisa feita de pó, que os rastros no tempo digam que eu não esqueci de onde vim, de quem eu sou e do motivo que me fez estar aqui algum dia. E mesmo sem ser mais coisa alguma, que a minha consciência seja capaz de agradecer.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Cinco minutos na timeline


A liquidez de Bauman me mostra uma mãe pintando o rosto com o sangue do filho em uma favela do Rio de Janeiro. Também me apresenta um massacre contra índios no Mato Grosso do Sul. Aí eu lembro que os índices de suicídio entre jovens indígenas são consideravelmente altos. Ninguém se comove, afinal, "eles não fazem parte da nossa sociedade". Assim como a mãe negra que vive na favela. Mais uma. E aquela mãe indígena que teve o filho assassinado em Santa Catarina enquanto o amamentava, alguém se lembra? É, mais uma.
Clamar por igualdade de direitos quando milhares vivem em condições tão desiguais, é o mesmo que lutar contra moinhos de vento. Igualdade de quê? A igualdade que eu julgo ideal não condiz com a realidade do outro. Enquanto isso, continuamos julgando o desconhecido sem considerar as reais condições que ele dispõe. Clamar por uma igualdade isolada, é egoísmo.
Uma minoria emudece a maioria, sabia? A história entristece, mas cabe bem para você que se diz contra cotas, contra o feminismo, que agride homossexuais, que julga o governo por oferecer subsídios. Enfim, um pouco mais de leitura cairia bem para você que se diz "senhor da meritocracia". Apesar de você, como diz meu amigo Chico, eu ainda acredito que esse ciclo de cruéis repetições um dia será finito, que Parmênides estava errado e que a lei do eterno retorno tem um limite. O leve é positivo, o pesado é negativo. Precisamos dos dois para viver em harmonia. Ocorre que, historicamente, o segundo tende a prevalecer.
Hoje, por exemplo, não há leveza. Nesses últimos cinco minutos, eu também vi um jovem se jogando na Garganta do Diabo, deixando para trás apenas uma mochila e um bilhete para o pai. Alguém filmou, o vídeo viralizou. Muitos suicídios ocorrem em lugares assim, isso não é recente. A diferença é que, hoje, a morte alheia virou atração. É, somos atrações de um circo de horrores. Milhares têm acesso, ficam sabendo, mas quem realmente se comove?
A memória é efêmera se não interfere no meu comodismo. O que a torna efêmera? A indiferença; não com o hoje, mas diante da história. Apenas os que se permitem a reconhecer os traços do passado no presente é que se comovem com a ausência de liberdade e injustiças que, sim, assolam milhares e milhares todos os dias.
O que têm em comum o jovem suicida e a mãe que me fez começar a escrever a primeira linha? Ambos são vítimas de uma desigualdade histórica, que assassina filhos, que lança esperanças para o vazio.
Em menos de 5 minutos, eu senti a tristeza de uma mãe, a injustiça de um massacre e a desesperança de um jovem. Hoje, vou dormir com esses desconhecidos. 

domingo, 17 de abril de 2016

Ironia, Cazuza, foi você dizer que só as mães são felizes

O que se espera de uma manhã de sábado? Perto das 08h, o sol já arde nos olhos, quase queima. Na esquina de casa, paramos o carro na faixa e aguardamos a travessia de uma família. Pai, mãe e filho, os três de mãos dadas. Nada incomum. Apenas o fato de que o menino, com não mais de seis anos (imagino), conduz os pais cegos para o outro lado da rua. Atento diante da missão que realiza com zelo, ele ainda faz um sinal de “positivo”, agradecendo por aguardarmos. Uma criança cheia de responsabilidades, que não se volta contra o mundo em virtude disso; pelo contrário, é gentil e se permite a agradecer.
Depois, na aula da pós – é sábado de pós –, o tema da aula é inclusão no ensino superior e o professor lança a dura realidade de sociedades excluídas, de mães indígenas que têm seus filhos degolados enquanto são amamentados. Todos assistimos na televisão e, naquele instante, lamentamos. Mas, e depois? Quem se preocupa com essa mãe que não tem mais um filho para guiar e, hoje, perambula sozinha rumo à loucura? Ironia, Cazuza, foi você dizer que só as mães são felizes.
Até quando mataremos a verdade que reside dentro de nós? Sabemos que ela existe; por ser uma inquilina indesejável, não a alimentamos, deixamos que mingue na nossa falsa ignorância. Por que não há compaixão diante da verdade? Talvez, falta alguém que nos guie até o outro lado da rua e nos faça encarar o sol que arde os olhos – e permitir que ele queime a indiferença existente em nossos corações.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Declaração

Será que a gente ainda se ama ou se acostumou um com o outro? Não sei, tem dias que as horas são sufocadas por incertezas. O que eu sei é que quando eu ligo cedo pra desejar um bom dia, não é pra ser chato, é porque eu realmente quero que seja um bom dia. Isso, ao meu ver, é amor. Quando eu organizo a casa pra que você consiga estudar e te cubro em silêncio, pois faz frio lá fora, é amor. Quando eu preparo a bolsa de água quente sem você pedir, porque eu sei que você sente cólicas, voilá... amor. Quando saio pra rua e volto com um milk shake surpresa, amor. Ou quando eu fico ansioso porque sei que você tem algo importante pra fazer e meu dia parece correr leeeeeeeeeeeeento, pesado... aham, também é amor. Ou quando eu digo “vou dar meu jeito, não se preocupe”, sim, amor de novo. Principalmente naqueles dias em que eu esqueço de mim, mas ainda assim não esqueço de você. São nessas pequenas coisas que o que a gente sente se manifesta. No querer o bem do outro, sem querer nada em troca. Não, eu não me acostumei com você, nem nunca vou me acostumar, porque sei que preciso recomeçar todos os dias. Aliás, precisamos, né? Nem sempre será fácil. Mas, ainda assim, não almejo outro amanhã senão este presente aqui, do teu lado. E até nas horas sufocadas por incertezas, eu tenho certeza: é amor.

quarta-feira, 9 de março de 2016

1996





Lembra o dia em que o avião dos Mamonas Assassinas caiu e muita gente não foi para a escola? Um pequeno grupo de crianças passou pela rua cantando “minha Brasília Amarela, tá de portas abertas”. Chovia e você disse que em dias assim, quando alguém que gostávamos falecia e as gotas inundavam a terra, era porque “o céu estava em festa”. Não entendi direito – a morte, o avião que tinha despencado, tampouco a tal festa. Rápido, a dúvida deu lugar à lamúria manhosa, afinal, eu também queria ficar em casa. Ou, quem sabe, ir lá fora cantarolar com os estranhos, tão alegres. Chovia e era preciso estudar, sempre. 


Sem motivo aparente, essa lembrança me visitou dia desses. Ainda sinto o clima úmido daquela manhã vazia, quase fria e chorosa em virtude da chuva insistente. Era março de 1996. E se, na astúcia de criança, eu soubesse que em poucos meses você também nos deixaria? Eu teria aproveitado cada instante ou admirado cada reprovação? Teria insistido para que você me levasse ver o trem cortando a cidade, outras tantas e novas incontáveis vezes? Não sei. Mas eu ainda sinto o gosto do bolo quente com leite gelado, combinação que nunca ocasionou "dores de barriga" e afins. 


Quando você partiu também chovia. Era noite de Natal e lá fora, nas ruas, tanta gente sorria, cantava. Foi a primeira vez em que percebi a incoerência da existência, onde a felicidade independe da vida alheia. Vai ver seja por isso que, quando me permito sentir breves espasmos de felicidade sincera, me condeno. Afinal, e os outros? Baita tolice! 


Realmente, chovia naquela noite. A água escorreu sem rumo durante o dia seguinte, e no outro, e no outro. Deve ter sido uma baita festa no céu. Como a que deve estar acontecendo agora, para outros pais, mães, filhos. Talvez, o som macio dos pingos na janela seja uma melodia terna, que quebra o silêncio e resgata lembranças – o jeito singelo de quem partiu nos acariciar e trazer a saudade.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Olhares na chuva










Fiquei tanto tempo sentada aqui, inerte, tentando contar os pingos de chuva. Esse vento com frescor de entardecer de verão é alento para dias cada vez mais breves. Mas, por favor, não confunda fugaz com leveza. Nada disso. Não há nada de singelo nos dias – apenas o amanhecer, que se anuncia em um tom rosado, lindo, galgando esperança.

A verdade é que predomina no ar um peso que inibi sorrisos. É um cansaço, compartilhado entre os olhares. Desconhecidos que se ignoram diante da fragilidade mútua. Então, na tentativa torta de afiar as horas, apresso ainda mais o passeio dos ponteiros. É um ritmo acelerado, mecânico, que balbucia minha fuga. Não há amor, nem vacilo; apenas uma marcha perfeitamente ensaiada. 

Tudo em vão. Continuo aqui, inerte, indagando a água que cai sem rumo, sem destino. E o meu? Confundo a lógica diante dos outros. Absorvo suas tristezas e justifico tal façanha com uma única palavra: sensibilidade. Ou é fraqueza? Antes eu fosse insensível, invisível ou, melhor, previsível. Pesaria menos? Talvez. 

Hoje, prevalece a sensação de que até esse pingo de chuva que paira manso no meu dedo é mais feliz do que os corações cambaleantes, que buscam a proteção fraudulenta de guarda-chuvas. Ah, se eu tivesse o humor de Ariano Suassuna ou pudesse ser um dos seus personagens mentirosos. Talvez, pesasse menos.  Será? 

Acontece que eu passo muito tempo aqui, inerte, tentando contar os pingos, tentando encontrar um pouco de ternura. Nos olhares, na chuva. Em mim.  

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Um amanhã sem maresia






É sensacionalismo mostrar para o mundo a imagem de um menino de três anos morto na praia? Então há pudor na imagem, mas não na palavra? Sei. A pergunta aqui é outra: do que há de evoluído em uma sociedade que não permite que mães e filhos cheguem em terra firme? Nada. E assim, guerras vêm e vão, nos mostrando que não há porto seguro. Enquanto isso, permanecemos aqui, à margem da impotência. Soa mais como hipocrisia. Quantas vezes, no conforto do nosso egoísmo, nos perguntamos sobre a guerra que avança longe daqui e não nos atinge, pois, entre nós e Aylans, há um oceano que, involuntariamente, afoga sonhos e anjos. A imensidão da nossa ignorância cabe em muitos mares; só não é maior que a tristeza de fazer parte de uma humanidade voluntariamente desumana, que ainda faz vítimas inocentes, crianças que não escolheram nascer nesta ou naquela nação; mas nasceram e tão logo morreram. Então, lembro do “eterno retorno”, que nos diz que vivemos em uma eterna repetição. A história nos mostra que sim. Somos impotentes, grãos de areia diante da cegueira alertada por Saramago. Foi em vão, José. Aylan vai tirar o nosso sono, a nossa sensação falsa de conforto. Mas até quando? Amanhã é um novo dia e dane-se o outro. Afinal, meu umbigo, minha conta de luz, minha visão insossa de coisa alguma prevalecem. Seguimos assim, protegidos pela indiferença. Hoje, Aylan deveria ter uma noite confortável de sono, numa cama quentinha, antes de ter comido algo gostoso. Deveria ter crescido a ponto de não usar mais aqueles sapatos. Ou ter reconhecido a sua história na aventura vivida por Pi. Mas não pôde. Não haverá mais amanhã, nem maresia.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Um movimento em direção a Deus





Já faz um tempo que venho organizando minhas crônicas para o que, um dia, será um livro. Tarefa árdua, afinal, não é só colocar um texto aqui, outro ali; é mais complexo, semelhante a gravação de um cd, onde uma música tem que completar a outra, assim por diante. Buscar uma ordem em meio a desordem é difícil. Rever o que estava aquecido no aparente esquecimento machuca. Principalmente porque me deparo com diferentes versões de um mesmo eu que, por vezes, soa como um estranho. Me tornei impostora de mim mesma? A resposta não vem.

Eis, mais uma vez, a liberdade presente na mudança. Então, me dei conta de que em vários textos menciono a minha relação com Deus. Algo involuntário até aqui. Longe de tecer qualquer comparação com os autores que me acompanham desde menina, mas jamais esquecerei o relato intimista que Benjamin Moser teceu sobre Clarice Lispector em sua biografia, mostrando que a obra literária dela representa um “movimento em direção a Deus”.

O fato é que a rejeição por esse Deus predomina em “Perto do coração selvagem”, como neste trecho: “E era tão perfeito o momento que eu nada temia nem agradecia e não caí na ideia de Deus”1. Mais tarde, a repulsa se torna uma busca, que surge de um jeito diferente em “A maçã no escuro”: “Seria isso o que Deus pacientemente esperara que ele compreendesse? Era isso o que lhe prometera. Mas mesmo que Deus pudesse falar, nada lhe teria dito por que se dissesse não seria compreendido. E mesmo agora o homem não compreendia”2. Estamos crendo, Clarice?

Clarice precisou se tornar Martim para revisitar um Deus incompreendido. A introspecção dá lugar a alguém que, aparentemente, depois de tanto resistir, crê. Em “Água viva”, o monólogo por vezes surge como súplica direcionada a Deus: “O Deus tem que vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha”3. Vísceras.

Desconfio de pessoas que vangloriam o ateísmo – exceto José Saramago, que me conduz a muitos questionamentos, por isso o temo. Desconfio, mas não contesto, os respeito. Porém, tenho dúvidas. Os imagino na hora do “pega pra capar”, naquele momento em que o chão vira fumaça, ou quando nos damos conta de que as pessoas que amamos não são imortais. Aí o mais incrédulo dos homens fecha os olhos e chora baixinho, como uma criança que se esconde atrás da casa porque quebrou a vidraça do vizinho. Então, o homem incrédulo clama com força: me dê mais uma chance, por favor! Silêncio em meio a soluços.

Já vi de tudo um pouco. Até o mais extremista virar evangélico e compartilhar, insistentemente, a nova postura. Respeito, mas também desconfio. A relação com Deus, assim como uma relação entre um casal, deve ser, sobretudo, preservada. Afinal, o verdadeiro sentido das coisas vive em melhor harmonia na calmaria a dois. Eis o amor genuíno.

Clarice sabia disso e justificava, dizia que Deus era um segredo só dela. Tanto que até hoje tentamos desvendá-la, escorregando em interpretações sujeitas a falhas. Entretanto, Benjamin Moser sugere que ela encontrou o Deus que passou a vida tentando compreender. “Deus teve de abandonar Clarice Lispector para permitir que ela começasse a sua própria obra de criação” 4, disse Moser, justificando: “... era fácil para Clarice Lispector rejeitar Deus, ou, no mínimo, sentir-se rejeitada pelo Deus que se afastara de sua família e de seu povo” 5, referindo-se à fuga que Clarice e a família, imigrantes judeus, traçaram na Ucrânia, até desembarcarem no Brasil.

Escrevi certa vez que os desencontros com Deus se dão pela mania que temos em humanizá-lo. Então me dou conta de que aprendi isso com Clarice e que, sobretudo, julgar a forma com que as pessoas encaram a religião é algo essencialmente humano e cheira caos. Em nome disso há guerras intituladas santas, inocentes agonizando, crueldade justificada pela fé, etc. Isso porque, embora galguemos um estado democrático e uma sociedade amparada no livre arbítrio, somos inteiramente arbitrários ao nosso oposto.

“Um Deus dotado de livre arbítrio é menor que um Deus de uma só lei. Do mesmo modo por que tanto mais verdadeiro é um conceito quanto ele é um só e não precisa transformar-se diante de cada caso particular. A perfeição de Deus prova-se mais na impossibilidade do milagre do que na sua possibilidade. Fazer milagres, para um Deus humanizado das religiões, é ser injusto – milhares de pessoas precisam igualmente e ao mesmo tempo desse milagre – ou reconhecer um erro, corrigindo-o – o que, mais do que uma bondade ou 'prova de caráter', significa ter errado”6, esclarece Clarice – a conhecemos como romancista, jornalista, cronista, quando na verdade ela filosofava sobre a existência.

Pode parecer confuso e contraditório. O fato é que no vazio entre o abandono e o encontro é que aprendemos a reconhecer o estranho que sempre esteve conosco. Senti-lo. Geralmente é na dor, naquele momento em que somos fracos, sem máscaras, acuados num olhar minguado que clama por compaixão. Pena que seja assim.




Referências
1 Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Editora Nova Fronteira, 9ª Edição – 1980. p. 52.
2 Lispector, Clarice. A Maçã do Escuro. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999. p. 227
3 Lispector, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. p. 55.
4  MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 165.
5  MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 164.
6  Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Editora Nova Fronteira, 9ª Edição – 1980. p. 91.