sábado, 29 de novembro de 2008

↕ Quando as estrelas começarem a cair

O céu cor de rosa e o sol se pondo eram indícios de que a noite ameaçava chegar. O velocímetro marcava 120km/h. No porta malas haviam lamúrias, sonhos e medos; guardados nas malas de mão daqueles que ocupavam os bancos empoeirados do opala 68 de capô branco e laterais pretas. Resolveram, enfim, ir embora. Um lamuriando o que não fez; Outra o que não pode fazer; E outra por não saber o que fazer; Algumas lágrimas rolaram e se perderam nos buracos da BR. Alguns conselhos tortos e piadas sem graça foram ditas. Horas depois eles perceberam o quanto estão à frente da mesquinhez e do preconceito nojento que paira nas latrinas da cidadezinha conservadora que deixaram quilômetros atrás. Acharam que haviam enlouquecido ou cegado; mas não, são os poucos que ainda enxergam. As horas passaram e eles pegaram a estrada de novo. O carro é estacionado para que nessa hora eles pudessem ouvir o canto da sereia. Mas a sereia era muda. O céu que estava lindo começou a assistir suas estrelas partindo; ia amanhecer. Amanheceu. Ninguém viu. Temeram a profecia que prega sobre a noite em que estrelas começarão a cair. “Quando as estrelas começarem a cair me diz, me diz, pra onde a gente vai fugir?” Todos em coro entraram num consenso, "Vamos voltar pra casa".

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

↕ À luz de velas

Meu bem, o processo consiste em te deixar irritada.

É.

Não faça isso.

Isso o quê?

Isso de falar “é” enquanto aperta as sobrancelhas e faz bico.

Por que?

Porque isso você faz quando está irritada. Isso não é pra você se irritar. Você tem que entender que eu tenho esperança em você, por isso faço o que faço.

Esperança?Spalding? hahaha

Não, tonga. Nada de black powers, por favor. Esperança com ç. Tenho esperança em você porque eu quero que você seja uma mulher fodona um dia.

Me deixa irritada porque quer que eu seja fodona um dia?

Poucas pessoas te colocam a prova como eu, eu sei – você gosta disso. Eu quero que você evolua, e que os jornalistas da capital venham pra cá te entrevistar um dia.

Você é apaixonado por mim.

Não. Na verdade você quer que eu seja. Isso porque você já está apaixonada por mim.

Há-há-há

É sim, não solte essa gargalhada nem faça essa cara de cínica. Nem bico.

Cale a boca.

Você só fala “Cale a boca”, quando sabe que eu tenho razão e por não ter argumentos para contestar.

Pára.

Admita vai. Se você admitir eu juro que retribuo os seus sentimentos. Mas farei isso só porque é meu hobbie.

Seu hobbie é me irritar.

Mas primeiro você tem que parar de usar roupas ripongas, de andar descabelada, de valar feito velha, de ouvir Bossa Nova e de ler romances passados em Minas Gerais.

Chega.

Não se irrite meu bem, prefiro você sorrindo. Te deixo ouvir Beethoven, mas me farei de surdo nessas ocasiões.

Por que você não se faz de mudo e não cala a boca?

Se você continuar assim, você vai morrer velha e solteira. Ou pior, pode morrer num acidente qualquer.

Se for pra morrer em algum acidente, que seja ao menos ouvindo música boa.

Concordo. Fui eu quem lhe disse isso um dia.

É.

É, de novo?

É.

Você é louca; Mas tira fotos legais e faz um bom café.

É.

– E me ama!

– É.

– É?

– Cala a boca!

– Meu Deus, se todas as mulheres forem como você, no meu enterro vai ter uma porção de garotas atormentadas.

domingo, 23 de novembro de 2008

↕ Deu por mim

Certa noite deu por mim um andarilho errante, que com um discurso pedante, com uma respiração arquejante, de mãos calejadas e face pálida, pregou de graça um sermão maçante em forma de oração; excruciante.



“Não temo a morte. Não tenho medo de polícia nem do rabudo. Não temo nada! Prefiro dormir em cemitérios. Muito embora eu não seja pomposo e qualquer obra em construção seja capaz de me aconchegar. Mas ainda assim prefiro deitar minha cabeça em epitáfios. Tenho essa preferência desde guri. Depois do dia em que as covas passaram a guardar minha santa mãezinha tenho ido dormir quase toda a noite ao lado do seu leito. É bem verdade que de santa ela nunca teve nada e que só a canonizei depois que a pobre já estava gélida e morta – tome nota que santo só vira santo se fizer milagre depois de morto!

Mas não se engane pensando que eu sempre fui sozinho no mundo. Depois da minha mãe tive mais duas mulheres. Houve um tempo onde um par de braços morenos, daquela que há muito amei, me acalentavam e me protegiam junto aos seus seios voluptuosos, nos quais eu sugava seu doce suor feito um recém nascido. Deitava minha cabeça junto ao seu peito e entrava num estado de letargia. Foi assim durante muitas noites. Mas esse tempo passou e virou passado. Hoje a morena, assim como a minha santa mãezinha, descansa em uma cova fria qualquer.

Então encontrei outra mulher. Aconteceu que numa noite como esta, enquanto eu andava torto com um litro de pinga em uma mão e um cigarro de paieiro na outra, avistei dentro de um cesto de lixo algo que refletia a cor azul. Cheguei perto e vi a minha santinha – não refiro-me a minha mãe desta vez. O azul era do seu manto de gesso. Suas mãos eram negras e suas vestes brancas. A escultura estaria em perfeito estado, se não fosse por um mísero detalhe: não tinha cabeça. Vasculhei até o fundo do lixo; lembro que quebrei algumas garrafas na afobação de encontrar a tal cabeça, mas foi em vão. Mesmo defeituosa acolhi a santa, pois veja bem: se as demais imagens santificadas nada dizem, esta, por não ter a cabeça que é o membro que acolhe a face e posteriormente a boca que é a encarregada da fala, então a ela dou um desconto! Me convenço, então, que ela não responde não porque “não quer”, mas porque “não pode”.

Então desde aquela noite eu e minha santinha seguimos pela estrada juntos; ela muda e eu descalço. Mas não se encabule, nem arregale esse lindo par de olhos para mim. Não tente adivinhar e buscar adjetivos na tentativa de saber quem eu sou. Entre ser ou não ser, prefiro ser os dois! Mas assim como eu, você nasceu de pés descalços; a diferença é que descalço eu continuo. Mas seja como for, pra que tanta pergunta? Eu que pouco sei ler e escrever conheço muito do tempo e da vida. Eu sei que a estrada que queima a sola dos meus pés e tanto me leva, é a mesma pela qual você caminha. Essa estrada me leva para o mesmo lugar que você há de ir. Pra que tanta pergunta se os meus pés descalços e os seus com sapatos de veludo vão de encontro com os mesmos vermes “na frialdade inorgânica da terra?”. É por isso que eu não temo a morte e prefiro dormir em cemitérios.

Agora, você tem um cigarro aí moça?”

"Máscaras ao meu redor
Eu já não sei o que é víscera ou fumaça

Véus negros que cegam aqueles que enxergam
São anjos sem asas, nem santidade"

domingo, 16 de novembro de 2008

↕ Eu quebrei os meus joelhos



Eu quebrei os meus joelhos,
Pra não poder
Mais rezar
Pra você

Eu quebrei os meus joelhos
Por não querer
Mais chorar
Por você



Meu querido, sei que há tempos não lhe escrevo, entretanto não se iluda; nem pense que eu sinto sua falta. O que o senhor deveria ter feito já fez; que era me ensinar como enterrar meus mortos. Aliás, obrigada! Não espere mais de mim do que esse singelo balbucio de “obrigada”. Fique com suas flores e suas velas e esqueça as minhas preces. Ah sim, ia me esquecendo, estou lhe trazendo hoje um santo de madeira, que a mim de nada serve já que nada diz.
Enfim, desta vez o motivo pelo qual lhe escrevo depois de tantos anos não é em celebração ao dia dos pais ou alguma outra data comemorativa tola. Então não espere desenhos ou poemas infantis. A questão é que, finalmente, encontrei uma maneira de fazer com que o senhor realmente suma. Pois concorde comigo, já que o senhor foi embora por que não desaparece? Sabe, chega doer quando ela olha pra mim procurando o senhor. Estremeço quando encontro em mim traços dessa foto oval que te identifica entre tantos outros.
Sendo assim, vou dar cabo de mim mesma para que finalmente o senhor suma. Viva! Por isso estou lhe escrevendo com um pouco de antecedência, como é de bom tom. Então arrume a casa e separe um bom vinho, em breve vamos poder sentar e conversar. E se prepare, pois eu não sei se o senhor sabe, mas eu quando começo a tagarelar, valha-me Deus, não paro mais. Mas não pense que eu sinto falta disso; estou falando isso por puro interesse, já que vou ter que passar uns dias em sua casa, até me instalar em uma só para mim. Por isso preciso ser educada, você em pouco tempo me ensinou bem isso.
Ah, uma última coisa: esteja bem bonito. Vista aquele terno azul marinho que o senhor foi sepultado e use aquele perfume adocicado. Não lembro o nome, só sei que era aquele verdinho sabe. Não é que eu queira te ver assim elegante, pra mim tanto faz. Mas é que essa é a forma que eu lembro do senhor, então é melhor que assim esteja para que eu não cometa a falha de lhe confundir com outrem. E se possível, mas só se possível, ao me ver diga: minha princesinha. Não lembro da sua voz direito, então isso vai ser bom.
Vale a pena lembrar que eu mudei um bocado. Não venha querer me pegar no colo como era de costume, tanto porque acredito que o senhor não agüentaria. Lembre que não sou mais uma menininha e que agora tenho seios – um belo par de seios diga-se de passagem! Troquei todos os dentes de leite; Caí uns tombos, ganhei algumas cicatrizes, alguns aplausos; e li uns tantos livros e escrevi muitas coisas nesses anos todos que aposto que o senhor nem faça idéia que existam. Ah sim, ainda tenho seu vinil do Nazareth, levarei para ouvirmos juntos.
Bom, por hora é isso. Em breve estarei chegando. Tenho tantas coisas pra perguntar. Prepare-se.

Atenciosamente,
Jozieli Wolff

↕Facínoras

A noite não tem lua e as ruas estão quase vazias, mas ainda há poucos boêmios andando desequilibrados pelas calsadas, lamuriando entre os becos desafinadas modinhas e tocando seus violões. Nota-se que o vinho desconsertou seus passos largos, mas é o vento forte que faz dos boêmios e de seus violões pares que dançam uma desajeitada valsa, na rua que se transformou num salão a céu aberto. Uns não agüentam o peso das pernas capengas e caem, fazendo do chão gélido seu leito. Ao longe é possível ouvir um cachorro que uiva. É um uivo abafado, o cão parece chorar.
Ali perto dentro de um bar qualquer uma vitrola velha está tocando Ray Charles. A iluminação do lugar tem um tom de sépia. Um cheiro adocicado de perfume barato se mistura ao odor de bebida e suor. Cigarros deslizam entre dedos indicadores e médios. A fumaça deixa o local com um ar denso e dificulta a visão. Mas mesmo assim é possível enxergar aqueles quatro rostos pálidos.
Quatro mulheres estão há horas dividindo uma mesa, bebendo e divagando sobre a vida – ou sobre como tirá-la. Pois, convenhamos, fora o confessionário da matriz e o divã de um bom psiquiatra, que outro lugar é o mais adequado para contar pecados e chorar mágoas do que uma mesa de bar?
Essas mulheres não têm nome. Por hora vamos chamá-las de Facínoras. Nas próximas linhas, caro leitor, você saberá o porquê de tal adjetivo.
Sobre o balcão há uma garçonete debruçada. Intrigada, ela tenta ouvir os murmúrios vindos da mesa das quatro mulheres. Mas é em vão. Ela poderia se aproximar da mesa, mas acha que conhece uma das Facínoras; e teme por isso.
Há pouco elas começaram exceder a voz e as palavras ficaram mais claras. A garçonete que está quase cochilando, agora tem um breve sobressalto e desperta, quando começa a ouvir o seguinte:

– David era o meu marido, tinha mania em arrotar. Sentia prazer fazendo aquilo. Cheguei um dia em casa irritada, no meio de uma crise de TPM, precisando de alguém para conversar e ele lá deitado no sofá assistindo futebol, tomando cerveja e arrotando. Ai eu disse: “David, por favor, pare de arrotar...”. E ele fez mais uma vez. Ai não teve jeito, peguei o 38 que ficava escondido na gaveta da cozinha, fui lá e dei dois tiros de alerta nos miolos dele.
– Eu conheci James há três anos num show. Disse pra mim que era solteiro. Transamos, nos apaixonamos, namoramos, casamos, nessa ordem. Até que descobri que de solteiro ele não tinha nada. Não só era casado, como tinha mais 6 esposas. Ai certa noite, ele descobriu que cerveja com arsênico não combinam.
– Já comigo foi diferente. Certa noite eu estava lá preparando o jantar, quando o Eduardo entrou pela cozinha agindo como um louco, gritando: “Sua vagabunda você anda tendo um caso com o vizinho?” Ele gritava e repetia sem parar. “Vagabunda, vagabunda”. Foi quando que, sem querer, ele caiu com o olho esquerdo em cima da minha faca. Caiu em cima dela 20 vezes.
– Ah, eu amava o Fred. Ele era um artista, um guitarrista. Só que ele me dizia que precisava sair toda noite pra “se encontrar”. Pra se encontrar com a Juliane, com a Indianara, com a Jozieli... Mas apesar disso não fui eu quem o matou. Provavelmente foi uma foi uma das amantes dele. Não sei qual, mas quando eu descobrir...
A garçonete que nesse instante serve a mesa, treme. E sem perceber solta o que estava guardando, “Fui eu quem o matou”.


Agora é possível ouvir o uivo do cão outra vez junto com versos desafinados de alguns bêbados que parecem o imitar, fazendo na rua um concerto; Dá para se ouvir também vindo de dentro de um bar qualquer alguns berros de mulheres e copos quebrando. Mas não se assuste pessoa, amanhã cada uma ajuntará seus cacos e irá para casa. Amanhã “chegarão em suas respectivas casas totalmente descabeladas. Se depararão com a moradia vazia e tomarão o resto de cachaça amanhecida que ficou em cima da mesa. Em seguida, fumarão igual Marias Fumaças, sem nem lembrarem mais do que aconteceu na noite anterior”.
Mas guarde segredo sobre o que acabo de lhe contar, digníssimo leitor. Não as denunciem nem as condenem, por favor. A verdade – e tome nota que verdades não são ditas com freqüência, pois sabe-se que ouvi-las não faz muito bem – é que amores entulham as covas dos cemitérios, pois são constantes entre os mortos que temos que enterrar. Afinal, que pessoa nunca assassinou um amor para continuar viva?


Facínoras: