terça-feira, 10 de junho de 2014

Entre estar e pertencer



Na cozinha, acomodada na cadeira que precisa de conserto, o segundo momento mais alegre do dia: anoitecer, com a cabeça vazia de trabalho, banho tomado, minha única preocupação é comer um pedaço de bolo de cenoura e tomar o meu chá. Já faz um tempo que peguei o costume de ligar o rádio enquanto me concentro em não cometer nenhum ato de gula extrema. Hoje, ouvi ao acaso uma daquelas mensagens de motivação que antecedem a Voz do Brasil. Um homem imitando Cid Moreira leu um trecho bíblico do livro de Mateus. O texto denota que basta uma fé do tamanho de um grão de mostarda para alcançar o impossível. Bonito. Indiferente de crer ou não, de ser cristão ou não, é inegável a beleza das histórias narradas na Bíblia. Nesse caso, um lembrete sorrateiro de que não há nada mais triste do que a desesperança. Mas evitá-la é tão difícil. “Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu”, aqui, na calmaria do fim do dia, Chico sussurra dentro da minha cabeça. Em momentos assim, a canção martela, vira enxaqueca. Mas o leão do meu eu, esse que tenho que matar todos os dias, está na distância entre os olhos azuis do menino que entrevistei essa semana – tagarela e inquieto para dar sua opinião – e seus pés embarrados, protegidos do chão por chinelos de dedo na manhã mais fria do ano. Não havia nenhum vestígio de tristeza naqueles olhos. Por quê? É o peso das meias que impedem as pessoas de sorrir? Lembro desse menino, vejo outro, aquele que vi dar os primeiros passos; e hoje dá lição. Meu irmão destinou parte do primeiro salário num jogo de cordas para o seu violoncelo. Talvez ele desconheça, mas está numa realidade paralela da juventude que pertence. Antes disso tudo – do Chico, do menino dos pés gelados, das cordas para violoncelo, do banho, do chá, da Bíblia, do devaneio – quando cheguei em casa do trabalho, um bolo de cenoura havia sido recém colocado no forno. Em cima da mesa, a bacia com o restinho da massa me esperava – um ritual que eu e minha mãe mantemos desde que eu era menina. Trinta e cinco minutos depois, pronto! No primeiro pedaço a acidez do dia ficou doce. Há uma distância feroz entre estar triste e pertencer à tristeza. Feroz porque entre uma condição e outra, paira a desesperança. Não há nada mais penoso do que uma vida sem esperança – sem fé em algo ou em si. Dias podem ser como a aquela canção, uma vida inteira não. Então eis o primeiro momento mais alegre do meu dia: é pela manhã, quando saio da cama, prendo o cabelo antes de ir pro banho e paro diante da janela: abro um pedaço da cortina e olho o céu; encaro o tempo, descubro o humor do amanhecer. Hoje, um tom avermelhado, um manto dourado nas bordas pelo sol sonolento que despertava, me dava bom dia como quem diz: recomece.   


domingo, 8 de junho de 2014

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Sobre cartuns, Voltaire e o tempo

“Pega um cd pra mim no porta-luvas?”. Puxei a portinha e lá dentro um laço roxo enfeitava, de um jeito singelo, o que indicava ser um presente. Hesitei, olhei pra ele como quem questiona: “É pra mim?”. Ele acenou que sim, era. Peguei, reconheci um livro do Voltaire e um cd, coletânea de Vinicius e Toquinho. No dia anterior, eu completara 20 anos. O presente de aniversário estava no meio de um pedaço de papelão decorado com recortes de cartuns, desses publicados em tirinhas de jornal. Não foi o presente, foi o embrulho meio artesanal. Tudo cortado e colado minuciosamente. O imaginei escolhendo as histórias, as recortando e colando uma a uma, até se tornarem um mosaico. Quem era ele, alguém que mal me conhecia e já demonstrava tanto carinho e entrega por mim? Quase cinco anos depois, ainda o reconheço.