terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O lustre de Virgínia

Se tratando de Clarice Lispector, suas protagonistas tornam-se tão ímpares que todo romance parece ser um monólogo. Não, não vou falar sobre Água Viva e sua protagonista sem nome nem rosto, que divaga sozinha ao vento. Falo de Joana, Lóri, Macabea e, principalmente hoje, da doce Virgínia, que protagoniza “O Lustre” (1946).

Imagino Clarice dizendo “Que demora, Virginia”, com sua língua presa e seu R arrastado: “Que demorrra, Virrrrgínia”. Demorou para quê? Para cortar o cordão umbilical; soltar a mão da infância; perder o júbilo pela família; esquecer o lustre do velho casarão. Demorou demais. Passou a maior parte da vida temerosa. Até que, diante de uma esquina, ao se ver insustentavelmente leve e prestes a ser livre, distraiu-se e deixou-se atropelar. Agonizou na rua, perante estranhos; partiu sem saber que deixava um coração partido.

Com ela, Clarice quis mostrar que uns conseguem andar sozinhos, trilham sua estrada sem sentir dor. Outros são mais vagarosos. Virginia foi assim – a menina que passou a infância querendo sair da fazenda e, já moça, sentia-se infeliz por dividir um apartamento consigo mesma e por se ver deslocada no epicentro da agitação de uma cidade pulsante; aquela dos sonhos juvenis.

Mas Virginia, sem muito esforço, penetra em você. Assim como as outras personagens de Clarice, esta pecou por amar demais. Vicente, eis aqui o nome do homem em questão. Mas ela não é todo amor. Com e sem ele, Virgínia nos lança, maciamente, doses de inquietação e questionamentos. Torna o futuro um lugar incerto; que em cima de uma gangorra, pende entre o lado seguro e o leviano.

No entanto, o que de início veio macio, aos poucos se torna perturbador; pra quem lê e pra quem escreve. Acho que por isso Clarice tratou de assassiná-la. E pra quem não sabe, a alternativa “atropelamento” foi inaugurada por Virginia (Macabea morreria, também assim, somente em 1977). E assim morre Virginia, sem despedida, apenas inundada de esperança, projetando um futuro bom.

Difícil tentar desvendar Clarice e suas personagens. As mulheres de suas histórias se misturam a autora e a você, leitor, que sempre vai pensar que está lendo uma autobiografia – de Clarice e, porque não, sua. E então você lê e relê páginas e páginas absorto, condenando-se por se identificar com tamanha inquietação. Fascinante essa capacidade de Clarice, em nos fazer pulsar, em nos fazer estremecer e, principalmente, nos questionar. Em “O Lustre” ela dá os primeiros passos para o que viria a fazer ao longo de toda sua obra. E o fez com muita maestria.