terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Natais

Todo pisar
No amanhã
Volta-se ao dia
De hoje
Que regressa
Com a lembrança de
Todo pesar. 

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Deus não é humano


Joelhos ao pé da cama, mãos unidas. Às vezes o pensamento voa, corre por algo sem importância, alguma futilidade. Mas a disciplina vem e, como se um tapa fosse dado na cara da consciência, a mente se volta ao que me trouxe aqui. Então agradeço pelo dia, pelo amanhã. Peço desculpas diante das falhas. Depois um Pai Nosso e um Amém. Na cama, mirando o escuro, me pergunto se o que ainda me faz rezar é realmente fé ou é o medo que me condicionaram desde criança. De ir pro inferno? De desagradar Deus? Não é isso. Minha fé é só minha e por vezes soa incomum.

Compreendo e evito essa mania bípede de humanizar Deus, achar que a tal imagem e semelhança significa que Ele é feito das mesmas fraquezas que nós. Pois não, não é. Desde a infância não consegui moldar um rosto imaginário para a figura de Deus, diferente de Jesus, retratado em filmes e desenhos animados como o homem de cabelos compridos e olhar amendoado. Meu eu da infância desenhou a imagem de cristo que ainda alimento. Mas Deus, para mim, nunca teve rosto. Sempre pareceu uma luz forte emanada de bondade.

Essa força cuja ciência busca reproduzir e identificar tampouco vai se materializar e dizer como devemos agir, apontando soluções. Deus e sua infinita beatitude se manifestam de forma singela; no vento que balbucia numa noite fria; no pássaro que beija o calor do sol; está em cada riso de criança; em milagres sem explicação; no chuviscar que banha a rua lá fora e embala meu sono. Ele também se mostra quando traz e leva as pessoas. Quando as mantém por perto. Num abraço sincero. Naquele “eu te amo pra sempre”. No verso daquele poema. Isso tudo, esperança e sabedoria, é Deus.  É Deus!

Pode não parecer e justamente por isso a compreensão é desafiadora: Deus também se mostra no triunfo zombador da tristeza, naquele instante em que a dor impera e ameaça jamais cessar. Me pergunto, ainda, como as pessoas que não acreditam Nele conseguem se manter em pé nos dias em que tudo desaba em volta. Eu rezo. Agradeço e também peço, sim. Que mal tem?

Não balance a cabeça desse jeito armado com olhar reprovador! Nem solte esse risinho abafado de quem domina a razão. O Deus que descrevo não é humanizado; por isso não falha. Te garanto que minha fé não é medo, nem tolice de quem cresceu regrada a crer. O medo e a obediência, confesso, vieram primeiro, em par. Mas depois veio a compreensão, o arbítrio, a busca e o encontro com Deus. E eu o encontro desde menina. O sinto todos os dias. Falo com ele antes de dormir. E  todas as noites a mesma cena se repete: joelhos ao pé da cama e mãos unidas.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Notícias suas

Encontrei no meio da estante empoeirada aquele livro do Camões que você me deu. Não era meu aniversário nem nada, mas você lembrou que eu gostava; do mesmo jeito singelo que roubou de um sebo aquele livro com reportagens da Folha de São Paulo da década de 70. Aceitei o mimo sem remorso – sim, fui cúmplice do furto com cheiro de mofo. Também achei aquele cd do The Doors que você me trouxe de aniversário, toda cheia de pompas porque o disco já era seu, estava meio riscado e veio sem papel de presente. Mas era o seu disco preferido, com a voz aveludada do Morrison, a mesma dos meus 17 anos. Gostei tanto. Graças a você, Kerouac e Bukowski vieram juntos, numa bofetada só. Foi de aniversário? Sempre você, com seus presentes sensoriais, viscerais. E eu, ainda tão inocente. Então, sem esforço, me encantei pela garota mais linda da cidade; mas não aguentei o peso da mochila dos vagabundos iluminados. Foi mais tarde que li Tristessa. Então compreendi: você queria me libertar. Por querer me dar coragem e ousadia, me deu “1001 maravilhas naturais para ver antes de morrer”. Disse que era para eu escolher um desses lugares emoldurados para irmos justos. Quando me formei, você me entregou um Roberto Bolaño. As vezes desvio as palavras, da mesma forma em que desvio seus olhos. Aliás, sinto falta dos seus “olhos de cristal sem névoa”, como diria Cecília. Poesia presenteada é indício de amor. Recebi carinho em forma de livros e discos. Mas nem sempre lembro disso. Ando tão desorientada em relação aos meus tesouros de papel e timbres. A culpa é por ainda não ter me debruçado em Lobo da Estepe e por ter lutado em vão com as Vinhas da Ira. Deve ser culpa daquele “Conselhos para um Jornalista” do Voltaire. Agora estou me encontrando com o bom Poe. Com ele não falho. Sabe, eu faria tudo por um dia sem me importar com erros de português, nem com livros não lidos e discos não compreendidos. Apenas me deixe sentir saudades, querer notícias suas. Meus bons amigos.

domingo, 10 de junho de 2012

nove de junho


Enquanto delineava os lábios há pouco, me peguei pedindo a Deus que as coisas continuem caminhando assim, de um jeito leve. “Afinal, deuzinho, foi tão difícil lá atrás”. Me vi pequena, tendo que assimilar tanta “coisa de gente grande”. Então pensei no menino de dois meses que sobreviveu milagrosamente a um grave acidente que vitimou seus pais numa rodovia de Santa Catarina. Seu rosto esteve em capas de jornais e foi Deus quem mais apareceu nas notícias. Imaginei esse menino crescendo, ouvindo a dolorosa história daquele dia, se vendo nos jornais amarelados. Rezei para que ele se torne uma criança alegre e, sobretudo, um homem bom. Nesse momento, tive uma lembrança curiosa da minha infância. Em meados de 1996 (deveria ser isso) eu adorava estragar formigueiros, só pelo prazer de ver os pontinhos pretos correrem entre os brancos, de um lado para outro, sem rumo. Depois do delito, saia em disparada para casa, perdendo o fôlego e com ar de tristeza. Foi assim que descobri o peso da culpa e do erro aos cinco anos – essa luta quase darwiniana me fez decidir que aquilo não combinava com o meu eu, então ficou na menina alourada. Dou um salto e penso na Clare, personagem do livro que leio com medo de chegar no final, e meu peito aperta.  Lembro da minha mãe, do amor incondicional e da sabedoria que forma seus traços. Quero um dia ser assim como ela, pode ser, Deus? Ainda ali, diante do espelho, reafirmei que o amor entre homem e mulher não é complicado e tampouco um bicho-de-sete-cabeças como pintam por ai, pelo contrário, ele é sereno e macio – e é todo meu. Quero envelhecer do seu lado. De repente a porta do quarto abre e sinto a sensação de ter sido pega em flagrante.

- Hey, já escolheu aonde vamos jantar?

- Ah, não, me distrai um pouco.

09 jun 2012

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Fátimas


A felicidade também mora naquela casa de um quarto, piso capenga e frestas nas paredes. Faz tanto, tanto frio a noite que Fátima e o marido abraçam os filhos para escondê-los do vento boêmio que passeia assoviando pela madrugada. Logo pela manhã, o desafio de sobreviver a mais um dia tem como revanche um olhar de esperança.
No café desta manhã não haverá café. Então Fátima disfarça a angústia e canta uma música, inventa uma história, faz cócegas. Tudo para enganar a fome dos filhos. Gestos no compasso em que, protetora como toda mãe, veste as crianças com a cautela de quem mede cada minuto, pois não pode perder a hora. O marido, na beira do fogão a lenha, assiste tudo com ternura.
Até que os dois pares de pernas curtinhas seguem rumo a escola. Os tênis quase sem solado, o uniforme acima das canelas também já não alcançam os punhos; mas isso só até o mês que vem. E assim Fátima vence a primeira etapa do dia. Ela sabe que ninguém vive de brisa, mas comprova, diariamente, que zelo de mãe alimenta qualquer fome.
Na casa onde ela trabalha como faxineira é tudo tão diferente.  A mobília, a mesa farta, os agasalhos grossos, os brinquedos espalhados pelo chão, também os sorrisos. Ainda assim, às vezes sente mais frio na casa dos patrões do que na sua meia-água de madeira irregular. Sabe a causa: falta ternura ali, um pouco mais de afago; embora desconheça a grafia desta palavra.
Do outro lado da cidade está ele – que quando senta no banco que lhe cabe no ônibus, pensa em querer que tudo seja diferente (só por hoje). Então deixa as sobrancelhas murcharem, puxadas para baixo pelo desânimo. Em seguida vêm os mesmos rostos matinais, enquanto o resto do mundo ainda parece dormir. As mesmas pessoas sobem os três degraus e entregam o dinheiro da passagem sem mirar o seu rosto no outro lado da catraca.
No final do dia, Fátima traz na bolsa desbotada alguns trocados, seis pãezinhos e uma caixa de leite. Sente um peso que não é das poucas compras, mas da saudade dos seus pequenos. Abre a porta, a tv de quatorze polegadas distrai a ausência da mãe – que abraça os filhos com viço e culpa por não ter chegado em casa antes. É tão forte que sinto sufocar.
Há poucos metros dali, ele mira o encontro dos pés com a poeira e se enche de alívio por avistar a casa que construiu com a ajuda da esposa. É modesta, sabe. Quase miserável. Mas é uma das poucas coisas que possui, além da família – e é por ela que os vestígios do dia-nada-fácil viram fumaça. A porta da casa está aberta. Antes de entrar, ele para diante dela e vê a esposa acendendo uma vela para Nossa Senhora. Como ela continua bonita, pensa.
A fé que Fátima alimenta diariamente lhe diz que as coisas um dia vão melhorar e que todo esforço será recompensado. Horas depois, todos dormem. Menos o zelo de Fátima, de mãe, este é o único que não adormece naquela casa; que é feliz porque tem uma Fátima, que faz do zelo o lar da sua família.
Lá fora, o vento corteja a garoa fina de inverno, sem sucesso.

quinta-feira, 5 de abril de 2012


Reparo as pessoas andando pelas calçadas desbotadas, atravessando o cinza das ruas. Esse desfile cotidiano de passos apressados sempre vem acompanhado pelo gesto inconsciente de balançar os braços num movimento cômico, sem compasso. E de que adianta tanta pose, tanto toque-toque de salto alto, se todas essas pessoas, como que numa coreografia ensaiada, apresentam a mesma dança de braços ridícula, que as torna todas iguais? Elisa aperta as mãos na cintura, na tentativa de evitar esse balanço. Funciona nos cinco primeiros segundos, depois a reluta vira incômodo. Tudo inútil, a tentativa de fazer diferente dissipa quando os braços caem livres rumo a dança das mãos. Como o cobrador de ônibus de uma cidade pequena, que quando pensa em querer que tudo seja diferente (só por hoje) sente as sobrancelhas murcharem, puxadas para baixo pelo desânimo ao ver os mesmos rostos matinais enquanto o resto do mundo ainda dorme. As mesmas pessoas sobem os três degraus e entregam o dinheiro da passagem sem mirar o homem no outro lado da catraca. Foi a mesma cena ontem, na semana que passou e vai ser assim amanhã. Eis a vida mostrando sem fazer esforço que tudo vai permanecer igual. É tanta ausência de sorrisos, meu Deus! Um gesto singelo desarma qualquer vestígio de uma noite mal dormida. Pena que serenidade não seja comum e involuntário como o balançar dos braços.

segunda-feira, 12 de março de 2012



Desencontro. Penso nessa palavra, no ciclo que a repete imemoráveis vezes e vacilo diante dela. Não é perder, nem esquecer, é desencontrar; saber onde a coisa paira e ainda assim deixá-la na lista de itens esquecidos. É uma ausência proposital, habilidade inata que amadurece quando a infância habita somente as fotografias sem cor. Como quem usa um sapato apertado de propósito, porque quer sentir dor. Porque a mesma perseverança (ou teimosia) que faz alguém mudar de cidade e emprego ou repetir o jogo da mega sena toda semana, abriga a mãe que dorme com os dois filhos no canto de uma rodoviária numa noite fria, envolvida por balaios e cobertores velhos. É a vida soltando um grito abafado para lembrar que em algum lugar distante, mais alguém está vivo.

Toda vez que vejo alguma mulher com o mesmo corte de cabelo de minha mãe, sinto o peito apertar enquanto simultaneamente a garganta engasga e os olhos ensaiam um par de lágrimas; prelúdio da perda. Então me pergunto como vai ser quando ela partir e me visitar em momentos assim, trazida por rostos desconhecidos. Não sei lidar com a morte, jamais aprenderei. Mas no lado avesso aprendi a desencontrá-la. Afinal, é no desencontro da lembrança que se esquece um sorriso, um gesto, uma frase dita. E usamos dessa arte milenar para desfocar a morte, a vida, as perseveranças alheias, o dia de ontem.

Não há o fim do mundo, há mundos que se acabam. Como a-infância, a-melhor-amiga-dos-16-anos, o-primeiro-emprego, o-amor-pra-toda-vida, o-dia-de-ontem, esse-segundo. Mas há sempre alguém que vai trazer embrulhado num papel de presente um porta-retrato do pai morto há 15 anos e dizer: “pode chorar, é teu direito”. Mas eu não tenho porque chorar, meu Deus! Eu aprendi a desencontrar a dor da perda.