A felicidade também mora naquela casa de um quarto, piso capenga e frestas nas
paredes. Faz tanto, tanto frio a noite que Fátima e o marido abraçam os filhos
para escondê-los do vento boêmio que passeia assoviando pela madrugada. Logo
pela manhã, o desafio de sobreviver a mais um dia tem como revanche um olhar de
esperança.
No café desta manhã não haverá café. Então Fátima
disfarça a angústia e canta uma música, inventa uma história, faz cócegas. Tudo
para enganar a fome dos filhos. Gestos no compasso em que, protetora como toda
mãe, veste as crianças com a cautela de quem mede cada minuto, pois não pode
perder a hora. O marido, na beira do fogão a lenha, assiste tudo com ternura.
Até que os dois pares de pernas curtinhas seguem
rumo a escola. Os tênis quase sem solado, o uniforme acima das canelas também
já não alcançam os punhos; mas isso só até o mês que vem. E assim Fátima vence
a primeira etapa do dia. Ela sabe que ninguém vive de brisa, mas comprova,
diariamente, que zelo de mãe alimenta qualquer fome.
Na casa onde ela trabalha como faxineira é tudo tão
diferente. A mobília, a mesa farta, os
agasalhos grossos, os brinquedos espalhados pelo chão, também os sorrisos.
Ainda assim, às vezes sente mais frio na casa dos patrões do que na sua meia-água
de madeira irregular. Sabe a causa: falta ternura ali, um pouco mais de afago;
embora desconheça a grafia desta palavra.
Do outro lado da cidade está ele – que quando senta
no banco que lhe cabe no ônibus, pensa em querer que tudo seja diferente (só por
hoje). Então deixa as sobrancelhas murcharem, puxadas para baixo pelo desânimo.
Em seguida vêm os mesmos rostos matinais, enquanto o resto do mundo ainda
parece dormir. As mesmas pessoas sobem os três degraus e entregam o dinheiro da
passagem sem mirar o seu rosto no outro lado da catraca.
No final do dia, Fátima traz na bolsa desbotada
alguns trocados, seis pãezinhos e uma caixa de leite. Sente um peso que não é
das poucas compras, mas da saudade dos seus pequenos. Abre a porta, a tv de
quatorze polegadas distrai a ausência da mãe – que abraça os filhos com viço e
culpa por não ter chegado em casa antes. É tão forte que sinto sufocar.
Há poucos metros dali, ele mira o encontro dos pés
com a poeira e se enche de alívio por avistar a casa que construiu com a ajuda
da esposa. É modesta, sabe. Quase miserável. Mas é uma das poucas coisas que
possui, além da família – e é por ela que os vestígios do dia-nada-fácil viram
fumaça. A porta da casa está aberta. Antes de entrar, ele para diante dela e vê
a esposa acendendo uma vela para Nossa Senhora. Como ela continua bonita,
pensa.
A fé que Fátima alimenta diariamente lhe diz que as
coisas um dia vão melhorar e que todo esforço será recompensado. Horas depois,
todos dormem. Menos o zelo de Fátima, de mãe, este é o único que não adormece
naquela casa; que é feliz porque tem uma Fátima, que faz do zelo o lar da sua
família.
Lá fora, o vento corteja a garoa fina de inverno,
sem sucesso.
Um comentário:
Que suavidade neste texto de tamanha complexidade social. Lindo, chorei!
Postar um comentário