segunda-feira, 13 de junho de 2011

Fios brancos e adeus


Difícil ter um começo, meio e fim sem correr o risco de ficar preso pelo pescoço em um deles. É, ficar ali, inerte, esperando a hora de seguir em frente. Duas semanas sem fumar, ainda é início ou já é metade? Sinto beirar o final. Meu dedo indicador da mão direita perdeu um pouco do tom amarelado e sujo, causado pelos filtros diários. A tosse aparece bem menos; e ainda assim quando surge, vem furtiva, quase sem som. Até me sinto sozinho.

Lembro de meu avô sentado à beira do fogão a lenha, fumando paiero, falando do seu tempo de pracinha na guerra e venerando Getúlio. Sinto não ter dividido um desses momentos com ele enquanto homem feito, sem ter joelhos de menino, nem olhos de curiosidade infinita. Entre uma pitada ou outra, sei que defenderia Che enquanto ele, pigarreando, se perderia em seu labirinto de memórias.

Tudo mentira, não conheci meu avô. Mas invento lembranças assim, para espantar o vazio.

A primeira vez que tentei largar o cigarro foi quando Alice ameaçou ir embora por causa do “cheiro forte de Carlton”. Por ela perdi o vício, a fome, o chão, o viço. Alice não gostava na mistura agridoce de bala de menta e tabaco. Foram meses dividindo comigo um apartamento de quarto e cozinha; às vezes me pergunto se não foram anos. Mas um dia Alice partiu, deixando no ar vazio o cheiro doce de lavanda barata - odor que não durou muito, pois na mesma hora rumei a mercearia, voltei segurando dois maços de cigarro barato.

Respiro pausadamente, enquanto trago um olhar caído. É de tristeza. Nessas últimas semanas ando me sentindo sozinho – sempre estive sozinho, mas agora sinto. Por isso me perco nessas histórias infundadas – imagens que surgem e ganham narração – sem saber se realmente aconteceram ou se as pintei na minha imaginação grisália, que ainda teima em pincelar vagas lembranças.

Sempre sutil. O cigarro era alento, uma boa companhia ao parar na janela para observar o orvalho em cima dos bancos da praça. A tosse inundava a casa de presença, sem transbordar o som vazio nem abafar o Roberto Carlos na vitrola.

Aqui, com as mãos vazias, admito que nunca achei que poderia mudar o mundo depois dos 30, quiçá depois dos 70. Por isso me conformei com a ideia de ir para o asilo, deixar esse apartamento antigo, a sacada de onde vi os prédios maiores e modernos nascerem, tomando conta da quadra e apagando o calor do verde.

Mas ainda tenho dois dias. O suficiente para descer rumo a mercearia, que há muitos anos deu lugar a um mercadão – quero sentir o gosto torpe do meu bom e velho amigo antes de partir. Aprendi que cigarros são bons companheiros em despedidas. Foi por isso que me viciei: cultivei e inventei despedidas, durante toda a vida.