domingo, 27 de julho de 2008

↕ Se o amor tivesse um cheiro, qual seria?

Um lápis preto tem a ponta afinada. A folha sobre a mesa, continua lá, em branco. Agora, algumas dezenas de círculos sem nexo são feitos sobre ela. Porém, nenhum garrancho torto capaz de responder qual seria o tal odor do amor, é formado. Talvez a folha continue nua porque não se pode escrever sobre o que desconhece.

Embora a solidão seja algo divino, e eu prefira a suave melodia do silêncio como companhia, nesse momento de total solidão eu vegeto. Suporto qualquer ausência, menos a dela. Em momentos como esse em que a inspiração me deixa, eu morro. Hoje eu estou morta. Minhas mortes podem perdurar dias, semanas, meses. São períodos de tortura, em que os papeis continuam em branco e o simples fato de se olhar no espelho causa asco. É quando a vida se torna oca, e eu me canso de viver, então padeço. Hoje estou cansada, não triste. Cansada e vegetando, sem achar a tal resposta.

Da janela vejo você na cafeteria da esquina. Cabisbaixo, mirando o que eu acredito ser uma xícara de café. Então, no mesmo compasso em que lembro de que estou atrasada, lembrei da vez em que me viu nua, e das vezes em que pude sentir o cheiro do amor. Agora de olhos fechados posso sentir. É um odor enjoativo, uma mistura de mentiras e mel. Sim, você me ensinou há muito tempo que o amor é composto por áridas mentiras, e é adocicado pelo mel. Mentiras e mel quando juntos formam algo comparado com o caos. Amor é caos. O amor tem cheiro de caos! Sendo assim, o amor tem o teu cheiro. O cheiro daquele homem ali, de terno azul, com os braços cruzados e sem dinheiro.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

↕ Flores, vísceras e cinzas

Flores
Você está ai. Os mesmos olhos que ontem me fitavam e condenavam, agora estão selados. O rosto antes levemente corado, agora é tomado por uma enorme palidez. A boca agora gélida e imóvel, nem de longe parece ser a mesma que ao fechar os olhos consigo sentir quão ardente era quando encontrava os meus lábios. Sua mão pequena, agora se faz entrelaçada sobre o seu ventre, enrijecida e fria.
Lembro da primeira vez em que toquei no seu rosto. Da primeira vez que a beijei ao som de uma música qualquer. Da primeira vez que me deixou guiá-la pela mão. Mas mesmo aqui, parado diante de ti nesse caixão, continuo com a mesma sensação e crédulo de que somente o teu peito junto ao meu, é capaz de criar um calor que facilmente acabaria com o vazio que carrego comigo agora, e o frio que sinto ao tocá-la. Lembro de tanta coisa querida. Só não lembro de ter dito que a amava. Desculpe se sempre fui tolo. Mas hoje lhe digo: “Eu amo você”.

Vísceras
A gente passa a vida inteira acuado pelo medo, quer ver?
A gente só faz reclamar, com medo de se acomodar. A gente ouve música doída enquanto chora mágoas, com medo de gargalhar. A gente não pisa na terra descalço, com medo de se sujar. A gente não sente a chuva tocando nosso corpo – como um homem nos guiando por algum salão ao som de um jazz qualquer – com medo de ser intitulado “anormal”. A gente não sente o vento, com medo do frio. A gente não tenta, com medo de conseguir. A gente não grita, com medo de gostar e repetir a dose. A gente anda na rua sem olhar pros lados, com medo de ser desmascarado. A gente não sabe amar – não sabe amar a família, os amigos, o cachorro. A gente causa mal a nós mesmos, com medo de causar aos outros. A gente passa a vida com cautela, com medo de se arriscar no abismo. E por fim, a gente deixa pra sentir o quanto ama alguém somente quando a pessoa vai embora, por medo de se declarar e ouvir um “eu também te amo”.

Cinzas
Hoje eu sou um amontoado de medos, vísceras, cinzas e flores. Tirando as cinzas e as flores com aroma enjoativo, você é igual a mim. Quanto a você querido, esse seu “eu te amo”, muito embora perto, ecoa longe. E digo mais, se fosse pra dizer que me ama no meu funeral, continuasse calado, seria melhor. Mas pegue um punhado de mim agora, coloque naquele seu cinzeiro colorido, e misture as minhas cinzas com as do seu cigarro. Assim, continuarei na sala, recebendo seus convidados, enquanto o seu amor e o seu luto perdurarem – o que será por poucos dias.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

↕ A luva sem par

Faz frio, e é um frio que não congela só os ossos, mas também o espírito. E enquanto a cidade dorme você está aí, usando apenas uma luva. E me pergunta – como num mantra sussurrado infinitas vezes no cálido lóbulo da minha orelha – o seguinte: “Dentro de uma frase feita, diga quem sou eu? Alguma coisa cujo a vida foi feita por um emaranhado de frases feitas?” Todos continuam a dormir e você ainda está aí, dentro de um silêncio que acalma e acalenta. Como é gostoso esse silêncio. Um silêncio que não é facilmente quebrado pelas tais frases feitas. Frases feitas possuem o sutil e refinado dom de quebrar o, até então, inquebrável. Esse é um silêncio de mãos dadas com um tênue odor de café e cigarro. Café e cigarro só perdem o posto de “par perfeito”, para o seu par de luvas caramelo – que deixou de ser um par. E me pergunta qual foi a última vez que deu a mão a alguém. Qual foi a última vez que você deixou algo abraçar as suas mãos? Eu lhe respondo: certamente foi um dia antes de você perder uma das suas luvas caramelo. Repare, um que era feito de dois, nunca mais é o mesmo quando sozinho. A quietude é quebrada pelo som que o cigarro emite enquanto queima. As faíscas e cinzas do cigarro embalam a valsa que a lua insiste em não dançar. Talvez porque não tenha par. A lua nunca teve par. Por relapso, você desfez o lindo casal que eram as suas luvas caramelo. Certamente a deixou em algum bar. O café acaba, o cigarro apaga, você ainda não. Você não é feito de faíscas, tampouco de cinzas. Deixemos isso para o cigarro que se desfaz entre os seus longos e finos dedos. E ao fechar os olhos, gargalha por se ver como um caminhante noturno, que embora estático, está indo embora. E em marcha, se distancia cada vez mais das enojadas frases feitas. E enquanto todos sonham, você acorda. E sonha quando acordado. Nesse instante, que antecede o prelúdio do nascer do sol, você se dá conta que é alguma coisa. Alguma coisa sem frases feitas, sem cinzas, nem faíscas. E enquanto sua vida não acabar nem apagar, você continuará ali. E no mesmo compasso em que o frio lhe abraça e acaricia, eu lhe digo meu amigo: “você é alguma coisa, que não precisa de coisa alguma”. Entretanto, trate de comprar um novo par de luvas. Suas mãos estão tão frias, e vazias. Mas por favor, mude de cor, nunca gostei de caramelo!

terça-feira, 8 de julho de 2008

↕ As bromélias de Dolores

Na casa verde da esquina mora uma cartomante viciada. Maria é seu nome. Um jovem cafona vê uma moça bonita morrer em seus minguados braços. A moça bonita tem como a última visão de sua curta vida, o óculos fundo de garrafa do jovem cafona. Alguém ouve Free Bird às sete horas de uma manhã de outono. Por fim, bromélias são cultivadas no túmulo 1912.

A vizinhança dorme. Não porque seja tarde ou demasiadamente cedo, mas em dias chuvosos a quietude e a alienação da pacata cidadezinha se tornam mais evidentes.
Dolores depois de muito divagar, guardou uns trocados e decidiu visitar Maria. Saiu de casa logo que o sol se pôs, andando de mancinho, com receio de que o assoalho velho e extirpado estralasse e acordasse os avós.
Já fora de casa, o ar era leve, típico das manhãs chuvosas de outono. Segurava na mão esquerda um guarda-chuva vermelho, enquanto disputava espaço com a água e as folhas secas que cobriam a rua. Aquela quietude lhe revigorou a alma.
Mas a sensação de gozo foi quebrada pelo tênue cheiro enjoativo de velas aromáticas e incensos, que lhe embrulhou o estômago. A sala era escura. O assento da cadeira um tanto quanto duro. Na sua frente, uma mesa pequena, com uma toalha vermelha. Duas velas, uma preta e outra branca. Um copo com água. Por fim, um tarô envolvido por um lenço preto. O lenço se abre e a pilha de cartas é liberta. “Corte em três maços com a mão direita”. Sem delongas, um jogo de frases perfeitas é jogado em seu colo: “Você será uma jornalista de renome. Trabalhará na Folha de São Paulo. Casará com um músico. Terá a casa no campo que tanto almeja e aquela pilha de vinis que tanto cobiça. Dará a luz à dois filhos, e não deixará de ser gostosa. E ainda adotará um mestiço. Ah sim, e terá uma vida longa”.
Leve como quando era criança e se perdia em meio à ciranda dançada no bosque do bairro, Dolores vai para casa. Ela está lá andando no meio da rua, guarda-chuva agora na mão direita, a mesma mão que a pouco traçou o seu destino. Vento frio no rosto, nenhum sinal de vida a pelo menos algumas quadras. Cessa os passos curtos, fecha os olhos no mesmo compasso em que abaixa o guarda-chuva. Deixa algumas gotas molharem a sua face pálida e o cabelo cor de palha que adora exibir. Nesse instante sente como se a rua fosse sua, e por alguns segundos essa sensação de posse se torna insustentável. Começa a cantar Chico Buarque “a vida é bela, a estrada é amarela...”
De repente como que saindo de algum beco qualquer, surge um jovem rapaz – o que faz Dolores engolir o canto. O jovem aparentemente carrega a mesma idade que a sua. Cabelo castanho, levemente penteado pro lado, do tipo topete, daqueles usados há uns 10 anos e que na época era moda. Roupa cafona, sapato marrom. “Meu Deus, alguém diz pra ele que é feio usar as roupas do avô, ou do pai! Santa Efigênia!" Nunca foi religiosa, mas em situações extremas ela tem a mania de clamar por Deus e por alguns santos que desconhece.
Porém, apesar de retrocesso, era bonito. Aquele rapaz lhe chamou a atenção. Acelera os passos pra tentar alcançá-lo. Já tinha tudo esquematizado na cabeça: encostaria em seu ombro, perguntaria a hora, sorriria enquanto jogaria o cabelo para trás – não, não ia seduzi-lo, mas toda e qualquer forma de aproximação requer esse procedimento – não sabia bem ao certo como falaria que ele deveria deixar a barba crescer, bagunçar o cabelo, rasgar umas calças e vestir um par de tênis furado. Mas na hora daria seu jeito.
Benjamin é um coitado. Além de nerd, é cafona. Já pensou em suicídio diversas vezes, mas sempre foi covarde para tal providência. Vai a igreja três vezes por semana, e aos vinte anos nunca conseguiu transar com Virgínia, sua namorada há quatro anos. Gosta dela – embora ela tenha mau hálito e nos últimos três anos tenha engordado consideravelmente. Sabe que sexo com a amada só depois do casamento, por isso se conforma com as punhetas que lhe visitam todas as noites. Trabalha o dia todo e no fim da tarde, quando chega em casa, precisa ser cauteloso se quiser ouvir seus vinis, pois o casal puritano de pais que tem, o proíbem de ouvir qualquer outro tipo de música que não seja gospel.
Enquanto tenta alcançar o jovem cafona, Dolores tem um breve momento de reflexão. Se pergunta se não é o retrato fatídico da mãe. Estremece, ao se ver refletida no retrato emoldurado da parede da sala, que tomado por um tom amarelado, há tempos perdeu a cor - tom amarelado de sujeira e asco. Sabe que tem o gênio do pai, mas isso sempre lhe foi indiferente, pois nunca morou com ele. Essa indiferença se torna maior agora, já que sabe que vai conseguir tudo o que deseja. De repente, tem a impressão de que algo se aproxima.
O jovem rapaz ouve um forte barulho e uma buzina ensurdecedora. Percebe que um acidente ocorreu na esquina anterior. Corre o mais rápido que as suas pernas magrelas conseguem correr. Se assusta ao ver o estado da moça, que apesar do sangue parece ser bonita.
Dolores abre os olhos, consegue sentir algumas gotas de chuva que agora caem com mais intensidade. Agora o vê mais de perto, mas antes que pudesse dizer algo, ela perde os sentidos. Dolores morre. O jovem retrocesso, depois de ligar para a ambulância, segue seu rumo. Passou alguns dias pensando na moça bonita que morreu em seus braços. Mas com o passar dos dias a lembrança desapareceu da sua memória, e ele continuou indo a igreja, com as mesmas roupas do pai. A cartomante comprou uma blusa estampada, um Carlton e dois litros de pinga com o dinheiro que cobrou da consulta que fez naquela manhã. “Cause I'm as free as a bird now, and this bird you can not change”, era a canção cantada por uma vitrola velha em uma casa amarela de portão preto, e que embalou o sono eterno de Dolores, que agora descansa em paz, no seu túmulo de bromélias.

Moral da história: Se for pra morrer, que seja ouvindo uma música boa! ;D


A música de Dolores: boomp3.com

domingo, 6 de julho de 2008

↕ Uma culpa a mais


Troque o uísque pela vodka. Se não consegue largar esses porres, nem tampouco as mágoas que tanto afoga, troque o tipo de álcool, por favor! Chega, isso já se tornou enjoativo. Você não me constrange mais com esse papo de dó. A mesma repulsa da desculpa. O mesmo soneto da culpa. Então, depois de muito se contorcer no lençol azul, que ela pôs na sua cama, você dorme. E sonha, comigo. E acorda, infelizmente.
A sua cabeça dói. Enquanto a dela, pesa. A sua dói devido ao porre, e a culpa. A culpa lhe sobe nos ombros e lhe faz capengar o dia todo – sim, estou acima do peso. Mas o que nela pesam, são os chifres.
O nome da fulana da noite anterior? Não lembra. Mas lembrará no instante em que a ver, pois, se não trabalha, deve tomar café com você na padaria da esquina. A última pelo menos, foi assim: “Você vem sempre aqui? Venho sim. Sou solteiro. Minha mãe mora no interior. Não tenho habilidade em cozinhar. Advogado, e você? Ah sim, reparei os seus traços, deve ser moça do sul mesmo. Aliás, lindos olhos, me lembraram o céu de março. Hoje? Ah sim, estou livre. As 8? Combinado! A propósito, como é o seu nome?”
Paramos aqui. O nome você não sabe. Ou nunca lembra. Exceto da última, que tinha o segundo nome da sua amada : Antonieta. Essa não foi esquecida. Ah sim, o nome da corna em questão é Maria Antonieta. Mas no geral, se formos analisar, é bom que você não saiba, nem tampouco lembre dos nomes. Não corre o risco de durante um orgasmo clamar pelo nome de alguma amante.
Amante? Amante não. Poderíamos intitular “amante” se fosse algo mais sólido. O que acontece são orgias momentâneas, né? Nunca teve amantes. O que teve, e tem constantemente, são trepadas e surubas. Meia hora? Uma hora? Na verdade, 10 minutos, nunca passa disso. Ah sim, claro “você nunca mais fará o mesmo”.
E quando as vê? O que faz? Finge que não vê. Às vezes manda flores. E some. Mulheres são tolas, mas sabem que transar com homens comprometidos, dificilmente, rende uma relação duradoura que gerará filhos, netos e bisnetos. Isso, só acontece com a corna. As cornas constituem família e tem almoços de domingo. Amantes e derivados, não.
E se pergunta por que continua traindo Maria. A resposta não vem. O vazio que tenta preencher, continua vazio. Você se vê completo apenas quando ela dorme no seu peito. No geral, o que faz é para alimentar um prazer sangue suga. E toda vez que encosta seus lábios em outros lábios, lembra do beijo de Maria, e da maneira com que faz bico sem perceber. E quando sorri no meio de um flerte qualquer, vê no ato o sorriso de Maria, que quando acontece é como um quadro raro, emoldurado por aqueles lábios vermelhos que dispensam qualquer pintura carmim. Ao sentir o toque dos seus dedos em outros seios, no ato lembra dos arredondados e doces seios de Maria. Quando se vê refletido em olhos alheios, ri num espasmo, ao lembrar daqueles olhos amendoados e insanos, que sorriem mesmo quando ela não sorri. E quando vê os seus pêlos presos em outros cabelos, se perde numa escuridão interminável, pois a luz dos cabelos dourados de Maria é capaz de levar qualquer homem a cegueira.
E a mim, o que resta é continuar lhe pesando a consciência e lhe fazer capengar. Só o que lhe peço é para trocar o uísque pela vodka. Recomendaria um bom vinho, mas o deixe para beber com Maria. Se ela ainda estiver lá.