domingo, 21 de março de 2010

R de Clarice

“Você gosta de viver?”, pergunto, antes que ela suma no corredor escuro. Ela se volta para mim: “Você gosta de respirar?”. Eu estava ali, mais uma vez, preso na sua teia invisível; incontáveis vezes lançada em mim, por aquele par de olhos amendoados. “Gostar não gosto, apenas respiro... oras, respiro porque preciso”. Ela gargalha, mas não é de alegria, é de raiva: “Você respira porque é covarde”. Covarde soou vagarosamente pela sala, e veio até mim como uma bofetada no meu rosto; com o rrrrr arrastado da sua língua prrrrresa. Finalmente ela some no corredor; sinto alívio. Minutos depois, ela volta com um pedaço de bolo de chocolate e uma xícara de café, os coloca na mesa de centro e diz, ríspida: “Coma! Essas suas olheiras são indícios de que você não está se alimentando dirrrreito”. Uma tensão pousou na sala e sem pedir licença sentou entre nós. Aquela frase foi o mesmo que dizer “quando estávamos casados, ao menos você comia direito”. Senti um leve instinto fraternal, uma faísca de zelo e amor. Mas foi um sopro de vento que se dissipou assim como veio, brevemente. Garfei o bolo como quem garfa a coragem, e me arrisquei: “Você me acha covarde?”. Ela acende um cigarro, o traga lentamente. Enquanto me responde, deixa que a fumaça escape entre seus lábios: “Covarrrrde sim senhor. Mas sempre achei o medo o pior dos seus defeitos”. Não hesitei, nem relutei... ela tinha razão. “Por isso você nunca deixou de ser um escritor de gaveta, pois com medo ninguém escreve nada”. De repente, uma sombra atravessa a sala rapidamente. “Seu apartamento agora tem ratos?”. Ela me contou que há tempos as folhas de hortelã nos armários deixaram de afugentá-los e que não se incomodava com a presença deles. Foi ai que tive a infeliz ideia de acrescentar um: “Sorte sua é que os ratos não inventaram um veneno contra pessoas”. Ela ficou em silêncio, e após uma profunda tragada soltou: “Erro seu. Eles lançam sobre nós o pior dos venenos: o medo”. Silêncio. Tomei o café, comi o bolo, ela acendeu outro cigarro e andou vagarosamente até a janela. “Você me perguntou se eu gosto de viver... sabe qual é a resposta?”, me questionou como que questionando a lua. Continuei calado. Seus olhos estavam mais firmes que nunca; estavam mareados de certeza: “Como você mesmo diz, gostar eu não gosto; no meu caso, vivo porque temo o que posso encontrar no outro lado da vidraça”. Me despedi. Ela me levou até a porta. Enquanto esperávamos o elevador, ela me beijou maciamente nos lábios e disse: “Venha me visitar mais vezes, e continue usando esse tom de azul, ele lhe cai bem”. Fui para casa embaixo de uma garoa fina, sentindo uma estranha sensação de nudez.


Aquela foi a última vez que a visitei, antes daquela manhã de dezembro, em que me ligaram do hospital dizendo que Clarice havia cometido suicídio; exagerou nos calmantes, um dia antes do seu aniversário, como quem quis imitar Florbela. Engraçado, até hoje trago comigo o peso de uma viuvez que não me pertence, afinal, já estávamos separados há doze anos. Mas todos os dias lembro daquele seu “covarrrrrde”; e não faço nada para tirá-lo de mim.