domingo, 20 de junho de 2010

O ramalhete que passou

Uma carta sem nexo para Glauber Rocha:


Glauber, confesso, permiti que as flores murchassem! Você ao menos sabia que era a reencarnação de Castro Alves e morreu feliz, por ter vivido mais do que Che Guevara. E eu? O máximo que consigo é uma catarse literária onde abstraio a melancolia dos autores que leio; e só. Talvez seja verdade que escrevo contos bacanas sobre uma tal de Clarice sem rosto, mas fora isso sou apenas “uma nuvem de saia”, que cultivou por muito tempo um ramalhete de incertezas vermelhas – que agora estão mortas.


Um dia me disseram que o tempo é amigo daqueles que não têm pressa. Mas eu não temo a pressa – a mesma que agora me pega, enquanto corro para não perder o ônibus que me levará para o lugar de partida. Aqui, já sentada, olhando os carros passarem em movimento do outro lado da janela, me alegro por ouvir Beatles na rádio da cidade, em plena tarde de uma quarta-feira qualquer – a mesma alegria oca que senti ao admirar um manequim nu numa vitrine quase vazia.


O sol ferve lá fora; admiro os gestos mecânicos das pessoas que teimam em negar que trazem no peito “um coração de carne, que sangra todo dia”, como dizia Saramago. “Dizia”, triste pensar em dizer “dizia”. Sei que quando sair desse ônibus azul, vou andar pela ruazinha arborizada que antecede minha casa e ali, em passos lentos, vou abocanhar o sol; o mesmo sol que em instantes irá se pôr. Mas como diz aquele que abocanha meus seios: “pare de regar as flores da incerteza”. Foi ai Glauber, nesse dia, que finalmente entendi o que somente a voz do amor seria capaz de me mostrar: a incerteza é a única flor que não merece ser regada. Por isso Glauber, confesso, deixei que essas flores murchassem!

Breves considerações futurísticas a todo jornalista foca

O currículo havia sido entregue há semanas. Depois dele veio a entrevista (trágica); a quarta nas duas últimas semanas. É bem verdade que se a chamavam é porque algo de bom havia de ter no currículo insosso da foca – você ai, que não transita no universo jornalístico, saiba que aqui o substantivo “foca” vira adjetivo e designa a pessoa (corajosa e sem juízo) que conseguiu terminar o curso, o recém formado.

sábado, 1 de maio de 2010

Dona felicidade

Avisto a casa e juro mais uma vez que “essa será a última vez que irei até lá”. O receio em visitá-la pesa mais do que a leveza da sua presença grisalha. Ela mora longe, no alto de uma colina; tomada pelo tapete esverdeado que dá lugar a uma árvore que, sozinha, zela pela humilde casa de madeira que um dia foi azul.


Finalmente cheguei. Bato na porta... silêncio. O som de passos macios no assoalho capenga da casa aos poucos começa a se aproximar. Ela aparece, me olha, como se quisesse enxergar minha alma – depois suspira. Então, estende suas mãos em direção aos meus ombros, me abraça forte e se apresenta: “prazer minha jovem, me chamo Felicidade”.


Entro. Aquele seu olhar de quem está diante de uma estranha foi insuportável. Queria poder gritar que ela me conhecia, que me viu crescer e que por diversas vezes já me visitou – que zelou por meu sono, que me fez sonhar. Mas a desordem se aquieta dentro de mim; reflito e percebo que é natural que ela não me reconheça, afinal, há tanto tempo não venho lhe visitar.


Me calo, a deixo falar. Reparo nos seus traços, tão similares aos meus. Os olhos cansados, a face flácida de quem um dia já foi bonita. A mobília está no mesmo lugar – parece que estive aqui ontem. Na parede, aquele mesmo quadro antigo com a figura de um belo casal. De novo: aquele mesmo quadro antigo, que quando eu criança me prendia por horas, continua aqui – e o meu fascínio por ele também. Ela percebe que estou longe, com os olhos fixos no quadro, então fala: “hoje você entende que eu moro num quadro assim – me deixe pintar o seu”.


Parti. Sai do alcance dos seus olhos e sei que novamente sofrerei para sempre por isso. Então olho para trás, avisto aquela casa e juro, mais uma vez, que nunca mais irei até lá.

domingo, 21 de março de 2010

R de Clarice

“Você gosta de viver?”, pergunto, antes que ela suma no corredor escuro. Ela se volta para mim: “Você gosta de respirar?”. Eu estava ali, mais uma vez, preso na sua teia invisível; incontáveis vezes lançada em mim, por aquele par de olhos amendoados. “Gostar não gosto, apenas respiro... oras, respiro porque preciso”. Ela gargalha, mas não é de alegria, é de raiva: “Você respira porque é covarde”. Covarde soou vagarosamente pela sala, e veio até mim como uma bofetada no meu rosto; com o rrrrr arrastado da sua língua prrrrresa. Finalmente ela some no corredor; sinto alívio. Minutos depois, ela volta com um pedaço de bolo de chocolate e uma xícara de café, os coloca na mesa de centro e diz, ríspida: “Coma! Essas suas olheiras são indícios de que você não está se alimentando dirrrreito”. Uma tensão pousou na sala e sem pedir licença sentou entre nós. Aquela frase foi o mesmo que dizer “quando estávamos casados, ao menos você comia direito”. Senti um leve instinto fraternal, uma faísca de zelo e amor. Mas foi um sopro de vento que se dissipou assim como veio, brevemente. Garfei o bolo como quem garfa a coragem, e me arrisquei: “Você me acha covarde?”. Ela acende um cigarro, o traga lentamente. Enquanto me responde, deixa que a fumaça escape entre seus lábios: “Covarrrrde sim senhor. Mas sempre achei o medo o pior dos seus defeitos”. Não hesitei, nem relutei... ela tinha razão. “Por isso você nunca deixou de ser um escritor de gaveta, pois com medo ninguém escreve nada”. De repente, uma sombra atravessa a sala rapidamente. “Seu apartamento agora tem ratos?”. Ela me contou que há tempos as folhas de hortelã nos armários deixaram de afugentá-los e que não se incomodava com a presença deles. Foi ai que tive a infeliz ideia de acrescentar um: “Sorte sua é que os ratos não inventaram um veneno contra pessoas”. Ela ficou em silêncio, e após uma profunda tragada soltou: “Erro seu. Eles lançam sobre nós o pior dos venenos: o medo”. Silêncio. Tomei o café, comi o bolo, ela acendeu outro cigarro e andou vagarosamente até a janela. “Você me perguntou se eu gosto de viver... sabe qual é a resposta?”, me questionou como que questionando a lua. Continuei calado. Seus olhos estavam mais firmes que nunca; estavam mareados de certeza: “Como você mesmo diz, gostar eu não gosto; no meu caso, vivo porque temo o que posso encontrar no outro lado da vidraça”. Me despedi. Ela me levou até a porta. Enquanto esperávamos o elevador, ela me beijou maciamente nos lábios e disse: “Venha me visitar mais vezes, e continue usando esse tom de azul, ele lhe cai bem”. Fui para casa embaixo de uma garoa fina, sentindo uma estranha sensação de nudez.


Aquela foi a última vez que a visitei, antes daquela manhã de dezembro, em que me ligaram do hospital dizendo que Clarice havia cometido suicídio; exagerou nos calmantes, um dia antes do seu aniversário, como quem quis imitar Florbela. Engraçado, até hoje trago comigo o peso de uma viuvez que não me pertence, afinal, já estávamos separados há doze anos. Mas todos os dias lembro daquele seu “covarrrrrde”; e não faço nada para tirá-lo de mim.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Balada do louco (azul escuro)

Tá com tempo pra um café? Tempo(?), essa fazia tempo. Na verdade não, mas adoro café e esse crachá tá me pesando no pescoço. Queria falar umas coisas com você. Pode falar. A gente pode continuar assim? Assim como? Assim, fazendo um diálogo na mesma linha. Ah, claro... Quem se importa? Na verdade muita gente se importaria. Não, mas eu digo: “quem de nós dois se importa?” Ah, se é assim... nenhum.

Me diz uma coisa, tu já se sentiu próxima da loucura assim__________? "Loucura", não de chegar a experimentá-la, mas de conseguir vê-la e entendê-la. Tipo, ver as borboletas azuis e negras, mas não tocá-las? É. Já. Poisé, eu tô assim há algumas semanas. Eu entendo, tem até um livro que fala disso, que na verdade os loucos são os mais lúcidos, “Elogio da loucura” é o nome. Aliás, sempre achei que o Arnaldo escreveu “Balada do louco” por causa desse livro “mas louco é quem me diz que não é feliz”. E o Machado abordou isso, ironicamente, em "O Alienista". Ok, vai ver eu entendi esses livros da forma errada... chega, parei. Para, eu gosto disso em você. Mas sabe, a questão é que eu me sinto a pior pessoa do mundo vendendo o tempo da minha vida por dinheiro! Quer ver, eu cheguei a anotar pra te mostrar... guardei no bolso, espera_______________. Aqui está:


"Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro esquecem do presente de forma que acabam por não viver nem no presente nem no futuro. Vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido." - Dalai Lama


Li isso e fiz um texto mega niilista hoje. Tá bem, eu sei, eu sou um porre com esse papo de niilismo né, mas fazer o que se eu me divirto escrevendo e argumentando sobre assuntos como se eles fossem de importância vital, sendo que a importância deles é ínfima. A verdade é que somos céticos demais, lúcidos demais. É, com uma loucura tão próxima a gente se sente menos sozinho no mundo. Nossa, essa frase é de quem? Qual? Essa que você acabou de falar. Ué, é minha. Bem, eu acho que é. Na verdade, eu não me considero louco sabe. Eu me considero consciente dentro da minha estupidez. __________________ você tem um cigarro? Não pode mais fumar aqui. Ah é, agora tem mais isso. Tá vendo aquele cara sentado sozinho no outro lado da rua? Claro que sim, não sou míope. Quando você olha pra ele, você se sente bem ou mal? _________________ não sei. Pois eu meu sinto bem pra caralho! Na verdade, quando vejo alguém sozinho me sinto acompanhado. Por isso nos damos tão bem, porque pintamos os nossos céus da mesma cor. Que bonito isso... E que cor é? Azul? Não sei... Azul é feliz né? É, pensando bem acho que azul é meio feliz. Mas, de qualquer forma, tem que ser azul_________________. Não sei, ainda acho que azul não soa bem.

Parece que a gente tem uns 60 anos sabia? Não sei, geralmente as pessoas com 60 tomam chimarrão e jogam canastra. Não ficam sentados na calçada escolhendo a cor dos seus céus. É... Odeio chimarrão. E canastra? Canastra também. Você percebeu que quando eu tomo o rumo da conversa ela fica absolutamente desfocada, sem nexo e desinteressante? Não acho desinteressante. Que alívio _________________. Tenho que ir trabalhar, você viu meu crachá? Não, acho que você colocou no bolso. Verdade. _________________ azul escuro! Quê? O céu, nosso céu _________________azul escuro me parece aceitável. Azul escuro então? Concordo, azul escuro.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Os sorrisos, os sonhos e os morangos

Te olho no espelho, nas fotografias de anos atrás e fico pasma com a sua frieza: como você conseguia sorrir daquele jeito? Eu sei, hoje, aqui, a expressão mais forte que consegue é o suspiro de cansaço, aquele que vem toda noite quando o sono está prestes a entrar. O sono entra sem cerimônia, afinal, já é de casa – senta confortavelmente no sofá da sala, e de lá, enquanto assiste putaria e toma café, zela por seus sonhos. E quando amanhece, você permite que o sono leve consigo seus sonhos, numa malinha preta de couro barato. O destino: a casa amarela de uma senhora grisalha chamada Covardia. Por isso há tempos suas lembranças não têm sonhos; nem sonhados, nem infundados.


Por quê? Para justificar você usa frases repetidas e aplica nas feridas doses incalculáveis de martírio, mesmo sabendo que elas fecham, reaparecem e depois partem novamente, como o sono com seus sonhos.


Ah sim, voltemos às fotos com sorrisos estampados: são do tempo em que você era apaixonada pelos morangos que seu pai plantava no quintal. Você não lembra, mas ele guiava suas mãozinhas para que o fruto fosse colhido da maneira devida, “você corta aqui ó, dois dedos acima do solo”. Hoje, seus dois dedos equivalem a um, e os morangos mofaram.


Você precisa aceitar o fato de que somos, eu e você, como uma árvore de vinte anos: que começará a morrer antes mesmo que os primeiros sinais de fraqueza contornem os traços desse corpo cansado. E esse corpo miúdo perdeu o viço naquele dia em que você os deixou partir: os sorrisos e os sonhos.


E esqueceu dos morangos.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Um passeio pelos jardins da infância

“Colo o rosto no seu peito para te ouvir pulsar.” Deitada no peito dele, lembra de quando era criança e costumava juntar umas cinco peças de roupa, o urso preferido, e depois de organizar cuidadosamente a “mala”, chegava na sala, olhava para os pais e dizia “to indo embora!”. E saia, correndo e gargalhando pelo quarteirão, até ser alcançada pelo pai. A cena se repetiu incontáveis vezes na infância; impulsionada pela ânsia, até então discreta, de ficar só. Mas ela nunca foi muito longe, e com o tempo passou a correr em círculos pela trilha do mundo, forjando rastros para quem pela estrada passasse e se pusesse a segui-la. Nunca permitiu ser guiada - até aqui. A mudez da solidão se tornou sua única companhia; que lhe via pura, nua, de um jeito que ela nunca se mostraria voluntariamente – não era tímida nem pudica, temia a nudez porque ela sempre vinha por último e era a dona da palavra final.


Já se passaram alguns minutos que os dois estão ali, num absoluto silêncio. Ela traz uma flor no cabelo porque não pode ganhar as que estão no caule. Olha cada detalhe do rosto dele – “Quero eternizar o seu olhar. Por isso o fotografo, emolduro, e coloco a fotografia num bidê dentro de mim”, balbucia para si mesma. Ele tira do bolso uma fita K7, entrega para ela enquanto diz: “eu vou te mostrar que as coisas podem ser diferentes, só me deixa... me dê tempo para que eu possa te guiar”.


Logo em frente havia uma árvore, forte, firme, com galhos longos e que assistia tudo. No verão anterior essa árvore possuía um galho que fazia uma enorme sombra no lugar onde eles estavam. Mas o galho não está mais lá, deve ter sido podado, ou apenas quebrou. Hoje o sol ilumina esse lugar.


Não há nada pior do que o vazio de uma folha em branco. Por isso, enquanto escrevo sobre eles, me pergunto se devo apressar os passos e esboçar logo o final feliz dessa história. Então, percebo que ele virá em sopros, e eu posso levar a vida inteira para alcançá-lo.


Mas hoje eu tenho um bom guia; e o anseio de ir embora repousa nos jardins da infância.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Autre chance

A ideia de ganhar uma herança encheu suas últimas semanas com uma expectativa que há tempos não lhe visitava. Da bisavó Camille ela sabe pouco, pois esta morreu antes que a bisneta que ganharia seu nome nascesse. Mas há três semanas chegou a notícia que uma herança havia surgido. E agora ela está ali, com um livro consideravelmente pesado sobre seus braços curtos, andando apressada pela rua movimentada, enfiando o salto do Chanel vermelho nas frestas da calçada.

Muitos podem a imaginar com uma cara de decepção por ganhar um diário velho – que aumentaria ainda mais as pilhas de papeis e livros que ela, enquanto jornalista, insiste em cultivar – mas não, ela estava empolgada para ler o que a esperava naquelas páginas desbotadas, encadernadas por uma capa de couro marrom.

Finalmente chegou em casa, disse “oi” ao gato, pôs as pantufas e passou um café. Por fim, sentou confortavelmente na cama e deixou que seus dedos abrissem a página marcada por uma fotografia preto e branco, opaca, que possuia a imagem de uma jovem e um rapaz, sentados numa rocha. A jovem tinha os seus cabelos e os seus olhos; era a sua bisavó.

A folha trazia algo que parecia ser uma carta, trajada por letras largas, que narravam o seguinte:



Ela sempre gostou do frio. Sente um arrepio nas costas que há tempos não sentia. Pelo menos não pelo toque sutil do vento. Já tinha esquecido quão embaraçosa era essa sensação. Embora sempre tenha a agradado, houve uma época em que lamentava senti-la. Agora, enquanto corre os olhos atrás do pássaro que de longe a mira, a sente. Por mais que esteja protegida por um emaranhado de panos, aquela sensação de êxtase é envolvida pela sombra da ausência.

A tarde é daquelas que não querem se pôr. Como a do seu aniversário de 24 anos, em que ganhou aquela velha cabana a beira mar. Foi todo o caminho com uma venda nos olhos, ouvindo Vinicius de Moraes. Imaginou todos os presentes cabíveis nos seus sonhos, mas ter a cabana que sempre sonharam, era realmente sonhar demais.

Nunca foi de sonhar. Até quando dorme dificilmente lembra o sonho que teve durante a noite anterior. Essa sua atração pelo frio possivelmente seja pelo fato de ser uma pessoa extremamente gélida. Porém, diante dele mudava. Nunca entendeu o porquê disso. Nunca entendeu o que ele causava nela. Um simples toque da ponta dos seus dedos, como se sua perna fosse o teclado de um piano, bastava para que ela se perdesse nele.

Ao conhecê-lo passou a sonhar. Mas não um sonho individual, eram sonhos recíprocos. E como eles sonharam com aquela cabana na costa sul. A construção era antiga. A mobília resumia-se a uma cama, uma lareira e a pilhas de livros e vinis espalhados pelo chão. Longos foram os dias e tardes sem fim que passaram naquele lugar. Intermináveis foram a caricias trocadas, os poemas escritos e os sonos compartilhados que lá tiveram.

Despertar pela manhã é a hora mais importante do dia. Abrir os olhos, olhar em volta e perceber que tudo está no lugar, como na noite anterior. O despertar na manhã de hoje veio de mãos dadas com uma enorme lacuna. Foi a primeira vez nos últimos anos em que ela acordou sem tê-lo no lado esquerdo da cama. Foi a primeira vez nos últimos anos que não dormiu acolhida pelo seu peito. Essa é a primeira vez que ela vai sozinha até a cabana.

Tantas foram as vezes que conversaram sobre a morte, ou que ele tentou conversar sobre ela. Em todas ele não hesitava, dizia não temê-la, pois, segundo ele, a mesma era a única certeza que tinha diante das incertezas que povoavam suas vidas. Enquanto ele perguntava o porquê do seu receio em morrer, ela nunca olhou nos seus olhos e disse que o seu medo não era de morrer, e sim temia perdê-lo, como perdeu tantas pessoas. Temia voltar a sentir frio.

Agora ela está lá, sentada em uma grande pedra, observando o chocar das ondas nas rochas que circulam a pequena ilha. O vento cortante insiste em lhe embaraçar os cabelos. Ri, ao lembrar das vezes em que ouviu: “você fica linda descabelada!” No meio de tantas lembranças, encontrou a pouco uma carta que um dia ele a escreveu, e enquanto tenta lê-la com dificuldade – pois as lágrimas que insistem em cair, lhe embaçam a visão e dificultam a leitura – sente o seu cheiro.

Das vezes em que tiveram que ficar longe um do outro, ela fechava os olhos e conseguia sentir seu cheiro, e imediatamente o sentia perto. E agora o faz. E o sente.

Quando ele a tornava um instrumento qualquer, tirando da sua pele infinitas notas musicais que somente os dois conseguiam ouvir, ela sentia um gostoso arrepio. E é esse mesmo arrepio inquietante que a tomou há alguns instantes. De olhos fechados tenta acreditar que o que lhe toca, e causa o tal arrepio, são os seus suaves dedos, e não o vento daquela fria tarde de outono.

O frio, há tempos não o sentia. Longos foram os anos que ela o sentiu constantemente. Breves foram os anos em que ela deixou de senti-lo. E agora ela o sente novamente, e o sentirá para sempre. Exceto quando fechar os olhos e sentir o toque e o cheiro dele.

Seus olhos ainda estão fechados. E ela ficará ali por horas, até que o sol se ponha. Porque ela sempre gostou do frio.



Fechou o diário, tomou um gole do café já morno e pensou: “é, eu já vi essa história antes... mas quem disse que dessa vez eu não posso mudar o final e torná-lo beeeeem ensolarado?".

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Down in a Hole

Os grungeiros do Alice in Chains talvez nunca foram tão leves como em Down in a Hole” música que faz parte do álbum Dirt, de 1992. A “leveza” é na melodia, não na letra, pois Down in Hole é mais um dos hinos depressivos da banda.



A leveza de Down in a Hole foi tanta, que a música foi regravada por Ryan Adams, e fez parte do EP Follow The Lights, de 2007 – é, até “dentro de um buraco” o discípulo de Jeff Buckley fica uma graça! haha



É, fica a questão: qual das duas versões é a melhor?

domingo, 10 de janeiro de 2010

A ternura no lugar do amor

Ao ler “A Confissão de Lúcio”, de Mário de Sá-Carneiro, marquei o trecho em que Ricardo revela à Lúcio a sua incapacidade de amar, pois, no lugar do amor, consegue sentir somente ternura. Tenho pena de Ricardo. Assim como tenho certeza, também, que muitos se identificarão com a mente perturbada do personagem; e do autor, que, diga-se de passagem, era obcecado pela loucura. Aliás, se serve como dica, ai vai: quem tem propensão à loucura, não deve ler esse romance/conto. Aos “lúcidos” fica a recomendação: a leitura desse livro vale muito a pena, principalmente para os apreciadores da literatura portuguesa, tão acostumados a ler Mário de Sá-Carneiro somente em versos.



“E é pela agitação desta cidade imensa, por esta vida atual, cotidiana, que eu amo o meu Paris numa ternura loura. Sim! Sim! Digo bem, numa ternura – uma ternura ilimitada. Eu não sei ter afetos. Os meus amores foram sempre ternuras... Nunca poderia amar uma mulher pela alma – isto é: por ela própria. Só a adoraria pelos enternecimentos que a sua gentileza me despertasse: pelos seus dedos trigueiros a apertarem os meus numa tarde de sol, pelo timbre sutil da sua voz, pelos seus rubores – e as suas gargalhadas... as suas correrias...


“Para mim, o que pode haver de sensível no amor é uma saia branca a sacudir o ar, um laço de cetim que mãos esguias enastram, uma cintura que se verga, uma madeixa perdida que o vento desfez, uma canção ciciada em lábios de ouro e de vinte anos, a flor que a boca de uma mulher trincou...


“Não, nem é sequer a formosura que me impressiona. É outra coisa mais vaga – imponderável, translúcida: a gentileza. Ai, e como eu a vou descobrir em tudo, em tudo – a gentileza... daí, uma ânsia estonteada, uma ânsia sexual de possuir vozes, gestos, sorrisos, aromas e cores!...



(Mário de Sá-Carneiro, 1913, Lisboa)



quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A longa e sinuosa estrada

"The long and winding road
That leads to your door
Will never disappear
I've seen that road before
It always leads me here
Lead me to your door"


The Long And Winding Road para mim é uma das mais belas canções dos Beatles. A música faz parte do último álbum lançado pelo quarteto, Let It Be, datado de 1970, e foi composta por Paul McCartney, que não gostou da versão final da música, sugerindo modificações que foram recusadas - há quem diga que o fato das suas sugestões terem sido negadas, não somente em relação a The Long And Winding Road, mas, também, quanto ao restante de Let It Be, contribuiu para o fim da banda.


The Long And Winding Road, 1970


E a resposta veio em 2003, quando Paul lançou o álbum “Let It Be...Naked”, e, entre as demais modificações no álbum de 1970, fez uma nova versão de The Long And Winding Road, que ganhou um traje mais “cru”, por assim dizer.


The Long And Winding Road, 2007



Embora Let It Be tenha sido produzido num ambiente pouco harmonioso, pois na época a banda estava em “crise”, nele os quatro cavaleiros se mostram mais maduros musicalmente – processo iniciado com Rubber Soul, em 1965 –, cada vez mais distantes daquele iê-iê-iê pedante do início dos anos 60. Vale frisar que, embora lançado por último, Let It Be foi produzido antes de Abbey Road, lançado em 1969.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Um quase incesto

Não sei porque tirei o telefone do gancho, há essa hora você está no trabalho. E quando você dissesse “alô”, o que viria depois? Talvez eu gaguejasse. Ou, talvez eu desligasse. É, talvez. Não sei explicar o que senti quando me contaram. Nada de lágrimas, você sabe que sou sutil. Na verdade, foi uma mescla de sensações. Todo mundo sabia, menos eu? Na hora meu coração acelerou, agora tá normal. Opa, acelerou de novo.


E agora? Nunca mais vou chegar em casa e me deparar com a tua cara fechada. E pior, nunca mais vamos dormir juntos, nós três: eu, você e a sua camisa velha do Ozzy. Aliás, você sorri enquanto dorme, sabia? E baba também. Ah meu Deus, por que eu não me joguei pra cima de você numa daquelas noites? Porque somos primos. Por que somos primos?


Juro, parte de mim quer olhar no espelho, dar um sorriso enferrujado e recitar: “que bom assim né”. Sorrir, sorrir e sorrir. É o que terei que fazer a partir de agora. Mas a outra parte não consegue. “Mentira, você sabe muito bem fingir!” – sussurra a sábia voz da insanidade, que não tem dono. É, fazer três meses de teatro quando criança foi de grande valia, me fez a rainha da ironia. Vou conseguir por inteira.


E se eu te chamasse para um café com bolo de cenoura? Poisé, peguei a receita na internet e deu certo, mas você não soube disso, né? Soube sim, eu te contei. Você disse que ia vir experimentar, mas não veio – que bolo. Com certeza você não lembra.


Sabe, antes de cobiçar você, eu cobiço coisas mais importantes que ainda me faltam. Agora, por exemplo, preciso de uma nova receita de bolo – não dos seus bolos. Preciso também de mais açúcar nesse café. Quem precisa de você, do seu mau humor, do seu autismo não acusado e da sua camiseta velha do Ozzy?


E enquanto eu e minha incompetência amorosa nem ficantes fixos arrumamos, você casa. HAHAHA alguém em algum lugar gargalha! Mas pensando bem, alguém nessa família tem que casar, copular, procriar, enfim, se render ao sistema. Você vai ficar chato, vai usar calças beges e camisetas de botão para trabalhar. Nos fins de semana usará pólos para ir à esquina comprar pão. Em casa vai usar um calção xadrez, que com o tempo vai furar e você nem vai perceber, vai continuar usando, até o calção virar pijama, como a gasta camisa do Ozzy. Você vai levar seus filhos nos almoços de família e pedir para que eu os segure. “Vai com a prima, vai”. Lindo. Só não se espante quando eles escorregarem do meu colo sem querer. “Opa, caiu o neném”. Confortante é o fato de que você vai engordar, ganhar saliências abdominais de homem casado, desses que passam o domingo vendo futebol. Ai um dia teu pinto não vai mais funcionar, e a graça do seu casamento deixará de existir.


E quanto a mim? Ah, eu vou conhecer o cara da minha vida; algumas tantas vezes ainda.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Vacilante

“Eu não deveria ter vacilado por tanto tempo com a vida”. É o que pensa enquanto o carro gira na pista, prestes a beijar o eixo dianteiro de um caminhão amarelo; um beijo mortal. Tudo gira, então ela pensa nos filhos, no marido, na mãe: “eles têm que se conformar, afinal, a vida é feita de perdas”. A colisão acontece. Barulho forte. Escuro. Fora do carro, ela sente uma dor terrível pelo corpo: “e eu que achava que a dor do parto só perdia para a que se sente durante a ânsia de romper o hímen”. Agora, sua vida é uma vela cuja chama flameja fracamente.


Chove. Do céu caem finos pingos de chuva que molham seu rosto, e que disputam espaço com o sangue carmim que desenha em sua face algo abstrato. Ela afasta os lábios com dificuldade, e permite que algumas gotas entrem pela sua boca que precisa sentir aquele gosto. “Por que foi mesmo que eu perdi o hábito de tomar banho de chuva?”, pergunta às suas recordações, enquanto se banha no centro do círculo formado por dezenas de curiosos que se aproximam. Nesse instante, ela ouve duas senhoras alarmarem: "Jesus! Olhem o rosto dela!!!".


Ela está ali, no meio da rua, esperando, esperando: “cadê a tal luz no fim do túnel?”, questiona. Ela não sabe, mas o que ela está esperando é que a vela se apague. Mas ela só precisa esperar mais uns três minutos, no máximo, pois embora a chama ainda emita calor, sua calidez está indo embora... 3, 2, 1... até que some. A falta de fé em si mesma foi o sopro de vento que apagou a vela.

Luiza acorda. Olha para o teto, para o marido, para o teto de novo. Ao olhar pela janela, para o céu, seus olhos congelam naquela direção. Sorri.

Sai da cama, pois às nove horas tem salão marcado. Está decidida: cortará os cabelos, bem curtos! “Então dirão: que lábios bem delineados, que olhar bonito ela tem!”.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Um hino ao pássaro

Esse “pardal” certamente foi o dono do canto mais lindo da França. Quando me apresentaram Edith Piaf, meus ouvidos não faziam ideia da grandiosidade musical que estavam ouvindo. Hoje, me arrepio toda vez que a ouço: a menina que passou parte da infância cega, que cresceu num prostíbulo, e que se tornou uma das mais importantes vozes francesas; emocionando multidões, arrancando com suas músicas lágrimas daqueles que jamais choram e, principalmente, embalando amores até os dias de hoje.


Ela, assim como tantas mulheres, pecou por amar demais – entendam esse “demais” não como “quantidade”, mas sim como “intensidade”. Por isso, a presença de temas amorosos é frequente na maioria das suas canções, que abordam o amor em suas diversas nuances. Aqui no Brasil, o estilo musical de Dalva de Oliveira e Maysa Matarazzo se assemelham muito ao da francesa – Dalva me lembra Edith tanto no vocal como na aparência física.


E como não poderia ser diferente, o primeiro sucesso de Edith, datado de 1946, foi a belíssima La Vie en Rose, que fala justamente sobre o que escrevi na postagem anterior desse blog: o poder de renovação do amor, capaz de tornar a vida cor-de-rosa.


La Vie en rose


Quem não conhece Edith certamente já ouviu o seu “hino ao amor”, que ganhou interpretações da brasileira Maysa Matarazzo – que sempre declarou ser fã da francesa. Mas talvez o que você não saiba é que Hymne à l'amour foi escrita em 1949, após a morte de Marcel, o grande amor de Edith – aliás, o título da música foi destinado ao filme de cunho biográfico, lançado em 2007, intitulado como “Piaf - Um Hino ao Amor”.Voltando a Marcel: o boxeador representou para Edith duas faces da sua vida: o renascimento e a morte. E o sofrimento de Edith pode ser compreendido em cada verso da música, que para mim é a mais triste da cantora.


Hymne à l'amour


O último grande sucesso de Edith falava de perseverança e, principalmente, representou em sua vida o recomeço. Non, je ne regrette rien, foi lançada em 1960, três anos antes da morte de Edith, que na época estava doente, muito debilitada pelo uso excessivo de álcool, mas principalmente pela dependência de morfina (creio que ela tinha câncer, mas não tenho certeza). Todos achavam que ela não cantaria mais, mas Edith reapareceu, doente, fraca, mas com força suficiente para gritar a todos os seguintes versos: “Non... rien de rien... Non... je ne regrette rien! Ni le bien qu'on ma fait, ni le mal - tout ça m'est bien égal!”


Non, je ne regrette rien


Quer saber mais sobre ela? Ah, basta saber que ela nasceu no dia 19 de dezembro, e, como eu não me canso de dizer, somente divas nascem nesta data!