domingo, 20 de junho de 2010

O ramalhete que passou

Uma carta sem nexo para Glauber Rocha:


Glauber, confesso, permiti que as flores murchassem! Você ao menos sabia que era a reencarnação de Castro Alves e morreu feliz, por ter vivido mais do que Che Guevara. E eu? O máximo que consigo é uma catarse literária onde abstraio a melancolia dos autores que leio; e só. Talvez seja verdade que escrevo contos bacanas sobre uma tal de Clarice sem rosto, mas fora isso sou apenas “uma nuvem de saia”, que cultivou por muito tempo um ramalhete de incertezas vermelhas – que agora estão mortas.


Um dia me disseram que o tempo é amigo daqueles que não têm pressa. Mas eu não temo a pressa – a mesma que agora me pega, enquanto corro para não perder o ônibus que me levará para o lugar de partida. Aqui, já sentada, olhando os carros passarem em movimento do outro lado da janela, me alegro por ouvir Beatles na rádio da cidade, em plena tarde de uma quarta-feira qualquer – a mesma alegria oca que senti ao admirar um manequim nu numa vitrine quase vazia.


O sol ferve lá fora; admiro os gestos mecânicos das pessoas que teimam em negar que trazem no peito “um coração de carne, que sangra todo dia”, como dizia Saramago. “Dizia”, triste pensar em dizer “dizia”. Sei que quando sair desse ônibus azul, vou andar pela ruazinha arborizada que antecede minha casa e ali, em passos lentos, vou abocanhar o sol; o mesmo sol que em instantes irá se pôr. Mas como diz aquele que abocanha meus seios: “pare de regar as flores da incerteza”. Foi ai Glauber, nesse dia, que finalmente entendi o que somente a voz do amor seria capaz de me mostrar: a incerteza é a única flor que não merece ser regada. Por isso Glauber, confesso, deixei que essas flores murchassem!

2 comentários:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

"Mas como diz aquele que abocanha meus seios"
Seu texto valeu por essa parte. Finalmente a coisa se tornou física e visceral. Parabéns.