terça-feira, 19 de novembro de 2013

Aporta à porta



Queria dominar um jeito singelo de bater à porta. Apertar no peito toda angústia de perder o zelo que mora do outro lado. Sem esmorecer. Tampouco desdizer que do amor se faz o medo. Feito aquela flor que se fez tão linda – e teima em existir, pelos restos úmidos e secos guardados numa caixinha de veludo. Ai o coração acelera, a voz falha. Reconheço, o que me domina é o amor; e só ele. Mas, ainda assim, há dias em que tudo veste desapego e ilusão. Na ânsia por uma canção no estilo Billie Holiday, soma-se as impressões, os devaneios de uma mente insana e, como resultado, acena a saudade. Enquanto a saudade estiver aqui e continuar me matando, sou feita do quê? Ora, de amor, já disse. Mãos, cabelo, olho e boca – sou toda amor? Sim. Mas, por que continuo aqui, encurtando o elo que um dia conduzirá as minhas despedidas? Por que desaprendi com o tempo a admitir que preciso das pessoas? Se eu entrar, você me diz? Calma, ainda almejo um jeito singelo de bater à porta. Toc, toc.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Ausência

Hoje recebi o apreço da
Dor dos meus pés cansados
Ironia do céu azulado pela partida
Sem rastros e passos largos.
           
Lá fora, anunciada despedida
Mantém a sensação de inverno
Afrontando a esperança desmedida
Num vazio que, sei, será eterno.  

Ah, se o contorno da tua lembrança
Trouxesse muda a certeza indecisa
Daquela conhecida como criança
Guiada pela dança imprecisa.

Das horas que não terei
Faz-se esquecer o rosto
Que no espelho não mais verei
Daquele do lado oposto.

Dizem: um dia será outrora
Na horta sem mais espera
O amanhã será eterna aurora
Em que os traços virão vazios de cólera.

Então, deu por mim estranha conduta
Do presente firme num adeus
Perdendo-se numa angústia injusta   
Do que sinto dos olhos teus.

Saudade. 

sábado, 6 de julho de 2013

Elogio da loucura

Ferreira Gullar tem dois filhos esquizofrênicos. Certa vez, Paulo, o filho mais velho, resolveu observar o vento. “O vento no rosto é sonho”, disse. Depois, perguntou ao pai se ele sabia disso. Provavelmente não sabia, mas aprendeu. O aprendizado virou poema:

“Ele entrava em surto/E o pai o levava de/carro para/a clínica/ali no Humaitá numa/tarde atravessada/de brisas e falou/(depois de meses/trancado no/fundo escuro de/sua alma)/pai,/o vento no rosto/é sonho, sabia?”.

Dias dezessetes me soam graves. Hoje, enquanto andava pela rua vazia, senti um vento cortante no rosto e lembrei dessa frase “o vento no rosto é sonho”. Eu não sabia disso, mas aprendi. Da mesma forma que, já faz um bom tempo, aprendi o quanto a poesia de Ferreira Gullar é verdadeira e íntima. O aprendizado veio de presente, das mãos mais lindas que já vi. O livro veio, por obrigação; depois, a desolação.

Eu confesso, nos dias de inverno permito afoita que ele me beije. Ele é insano, me beija e beija a todos. Depois segue sozinho, assim como eu. Hoje, por um instante, achei que Paulo tivesse razão, sim, o vento no rosto é sonho.

Toda manhã pela rua enquanto eu passo, meço a angústia que repousa leve, no orvalho das folhas verdes e brancas. Piso macio para que ela não desperte e não pouse densa no meu dia. Grito calada: “não sou daqui!”. Ninguém ouve. Então sinto o vento, o beijo mais uma vez; e percebo que somente a loucura deve ser elogiada. A minha, a sua, a de Paulo, a de Erasmo.

Mas louco é quem me diz que não é feliz. Eu sou, Paulo é, Erasmo era.

*Texto originalmente escrito em junho de 2009, carinhosamente reeditado em julho de 2013. 

sábado, 15 de junho de 2013

Dores do blues




“Gosto de gente doída”, escrevi aos dezoito. Parte disso ainda é verdade. Talvez por isso eu goste de você. Talvez por isso eu goste de blues. O certo é que todos fogem da dor, embora a procurem sem cessar. É uma mania inconsciente. O tempo todo a buscam e hesitam admitir. Eu não fujo, nem nego. Até simpatizo com ela, a considero necessária; desde que seja breve.

Dizem que a gente só sabe o que é o blues no dia em que conhece a dor – existe uma música mais ou menos assim. Mas se o músico tiver razão e a vida for realmente um blues cheio de versos, então a dor é a essência. Eu concordo. Só é possível se sentir realmente vivo depois de sentir a primeira dor. O primeiro tombo, a primeira gota de sangue que escorre pelo joelho trilhando um caminho carmim. Ou a primeira lágrima que molha o rosto – não aquela da infância, pedindo colo – aquela que mostra o quanto o mundo pode ser cruel.

Com o tempo você aprende que cair é fraqueza e chorar é tolice. Ou não, talvez não tenha aprendido nada disso. Talvez por isso eu goste de você. Gosto de você não por sentir amor, não mesmo, mas por sentir a dor, a sua dor; que é tão minha quanto sua. Afinal, é tolice  chorar lágrimas por ninguém e criar um escudo frágil para escapar da dor. É preciso aceitá-la, como uma amiga pouco cauteloza.  

“Libertar-se-à, nunca mais!”. Eis o corvo de Poe, animal maldito, que morre orbitando. O que isso tem a ver com a dor e o blues? Embora não possamos pressentir a morte e voar até o infinito para morrer diante das estrelas, fomos nós, homens, responsáveis por extrair da música muito mais que sonoridade. Blues é, puramente, sentimento.

Dizem que você só vai saber o que é um blues no dia em que souber o que é a dor. Eu digo diferente: você só vai saber o que é um blues no dia em que souber o que é o amor; a dor, garanto, é passageira. E  quando ela te visitar, não a ignore, ela te fará mais forte. Apenas tenha cuidado, garanta que ela seja breve.


*Texto originalmente escrito em março de 2008, reeditado em junho de 2013. 

terça-feira, 28 de maio de 2013

O caso da troca de versos (sem métrica)







Quem acompanha meu blog deve ter visto que em março publiquei uma crônica destinada ao escritor Getúlio Rui Palma. O texto estava escrito desde dezembro, protelei a publicação porque queria entregá-lo pessoalmente ao destinatário. Mas o ano começou do avesso e eu fiquei meses sem vê-lo. Até que publiquei a crônica que, eis a façanha da Internet, foi lida pelos filhos do seu Getúlio. Depois disso, o texto viajou, repercutiu, pessoas que eu não conhecia vieram até mim para falar sobre a crônica. Dia desses, o próprio Getúlio me ligou, avisando que me visitaria para entregar uma espécie de réplica. E a visita aconteceu, semana passada. Numa folha cuidadosamente dobrada, veio o que ele descreveu como “blogue artesanal”. Redigi o texto, respeitando cada vírgula – ele mesmo pediu para que o publicasse na Internet. Eis o carinho desse meu amigo, que tanto admiro e quero bem:


  “Para Jozieli Wolff
  
        O panorama do mundo atual, com a explosão populacional, assusta realmente: as sociedades são cardumes de piranhas que se entredevoram; impera o canibalismo.
          Hoje é perigoso viver.

Ela recém ultrapassou duas décadas de existência. É lugar comum dizer-se “tem toda uma vida pela frente”... mas, nesse caso, a certidão do cartório não acompanha a idade do crescimento mental.
          
Muito simples em seu estilo de vida, não tem atração por conglomerados humanos; porém, não foge da multidão por força de sua profissão: é jornalista. 

Trata-se da comunicadora Jozieli Wolff, atualmente em cargo de assessora de imprensa. Tem o talento da análise literária; senso crítico e analítico. E não lhe falta criatividade. Assim, será normal sua escalada e, de mera assessora, passará a ser assessorada. Eis a previsão. 

 Getulio Rui Palma – escritor.
Maio de 2013”.