sábado, 30 de agosto de 2008

↕ Carta Póstuma

O quanto tudo mudou. A casa antes agitada se tornou escura, habitada por móveis empoeirados. O quintal há tempos deixou de ser cuidado e as árvores nele estão velhas, secas e sem vida. Inevitavelmente, me vejo igual a este quintal. O amarelo da fachada da casa deu lugar a cor alguma. Nossos livros enfeitam a estante junto aos nossos vinis; objetos cheios de lembrança, que desde que você partiu, não saem do lugar. A verdade é que muita coisa foi esquecida. Mas quando revisito nossas fotografias, reafirmo que a nossa história permanece inteira na minha memória. E se eu fechar os olhos consigo te ver como no primeiro dia, na primeira vez; e lembrar de cada momento. Nos últimos anos, suas mãos estavam tão cansadas, seu rosto flácido e os cabelos perderam a cor. Porém, você continuava linda. Quando fecho os olhos a noite, esperando que a morte venha me buscar, sinto um leve peso sobre mim. Nesses instantes tenho a impressão de que você está ali, dormindo em meu peito. Sabe, queria poder voltar no tempo, quando eu, com zelo, ainda podia lhe proteger. E então eu balbucio baixinho: volta pra casa. Mas você não vem. E agora a casa está vazia, mas o teu cheiro continua aqui.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

↕ O pecado

Ele foi um sonhador. Uso termos no passado, não somente pelo fato da foto que tenho em mãos ser antiga, mas por ele já ter morrido. Estarei pecando por falar sobre alguém que não pode fazer uma réplica? Pecado para mim, é morrer antes de realizar seus sonhos então pecador aqui, somente o falecido.
Ele sonhava, e como sonhava. Talvez no exato momento da foto estivesse pensando algo do tipo, "Ah, serei um grande jogador de futebol" – o que é comum em garotos de 10, 11 anos. A maioria não se torna um. E no lugar aonde a hipocrisia leva flores nos funerais, e o pecado é o protagonista do espetáculo chamado “vida”, a maioria das pessoas morre antes de conquistar seus sonhos, é fato. Outros tantos porém, vacilam a vida toda, e antes de se tornarem adubo, há muito tempo já estão mortos pois não se dão ao luxo de sonhar.
Ele cresceu, e antes que a morte o buscasse vieram outros sonhos. Foi inevitável, ele cometeu o pecado de se deixar apaixonar pela moça que conheceu no cemitério, no enterro do seu pai. Ela morava numa casa cujo muro fazia divisa com o cemitério. Foi num dia de setembro que ela ouviu um choro abafado, e com dificuldade empilhou uns caixotes e na ponta dos dedos do pé conseguiu presenciar a dor alheia. Ele estava lá, debruçado sobre um túmulo azul, conversando com alguém que já não podia responder.
Um café. Foi o que ela ofereceu a ele. Um tempo depois, casaram-se e uma filha tiveram. Ele construiu um castelo, e nele colocou a sua rainha e a sua princesinha. Princesa, era assim que ele a chamava. Para ela, ele queria dar o mundo, mas do mundo ele foi tirado.
E num dia de dezembro, foi justo pela sua princesinha que ele chamou, e pediu enquanto agonizava: "cuidem dela pra mim". Talvez pelo fato de pensar nela enquanto a morte o carregava no colo, ele tenha se deixado levar. Talvez se distraiu, e por isso "se deixou" partir. Talvez a culpa seja dela. Talvez esse tenha sido o seu pior pecado.
Dela, alguém cuidou. Para ela, o mundo não foi dado. Para ela restaram somente as fotos desbotadas e seus discos do Nazareth. As fotos não permitem que ele se perca na sua memória, e se torne mais uma das tantas coisas que ela já esqueceu. As músicas o trazem para perto.
E então como uma herança, ela passou a praticar o pecado. Peca por não admitir que sente na boca o gosto azedo da saudade. Peca toda vez que anda na rua, e começa a mirar rostos estranhos na tentativa de desenhar como ele seria hoje. Peca por tentar adivinhar quais eram os seus sonhos, e por nunca ter perguntado quais eram, enquanto ele ainda estava aqui. Peca por sonhar.
Ela sonha, e como sonha. Ela sabe que o tempo é curto. Ela teme deixar que o tempo passe. Teme virar apenas lembrança, de uma fotografia desbotada esquecida no fundo de uma gaveta qualquer. Teme amar tanto uma pessoa, a ponto de se distrair e partir antes de conquistar seus sonhos. Teme ser mais uma pecadora. Teme pecar. Mas continua pecando.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Ela está ali. Vento no rosto, os braços abertos como quem espera um abraço. No mesmo compasso que abraça o vazio, ela olha para cima, para o céu. Fica assim o tempo todo. Às vezes chove, às vezes o sol se faz rei, e tudo faz. Às vezes a chuva lhe pesa nos ombros e a faz capengar. Às vezes os raios de sol são tão intensos, que ela vai secando com o estio, e qualquer vento a dispersa, como agora. Hoje, certamente ela é um grão de areia. Mas agora ela é eterna.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

↕ As três semanas da Dona Maria

Nota: A insensibilidade e a facilidade notória de fazer fofoca existente nos homens, foram enfatizadas, salientadas, frisadas, ressaltadas, destacadas e escancaradas, no diálogo a seguir:



J Boicotaram nosso café!

K– Sim, bem hoje que tem chá de abacaxi.

L – É que a Dona Maria não veio trabalhar hoje.

J – Não sei. Só sei que boicotaram nosso café!

K– Ah, é. Por que será?

L – Ela não anda muito bem. É que o marido largou dela.

J – Puta merda, sério?

K – Coitada!

L – Sim. É que ele arrumou outra.

J – Coitada.

K – Sério?

L – Sim. Na verdade o marido dela é um vagabundo. Não trabalhava não fazia nada. A Dona Maria dava tudo pra ele, dava tudo pra ele!! (sim, essa afirmação foi repetida duas vezes, como está descrita aqui). Ela trabalhava o dia todo, enquanto ele ficava sozinho em casa. Nesse espaço de tempo, ele arrumou outra. Ele levava a outra pra dentro de casa, e ainda cometia orgias com ela na cama da Dona Maria.

J – Mas isso é nornal gente. Eu não me espanto.

K – Eu quando acabei o meu namoro, fiquei um mês de luto.

L – Calma, depois vocês choram as mágoas de vocês. Eu ainda não acabei! O pior vocês não sabem: ele ainda disse pra ela que ela era uma vagabunda, e que não fazia nada em casa!

J – Tá, mas como você sabe de tudo isso?

K – É, como você sabe de tudo isso?

L – Ah, contaram pro Japonês, e o Japonês me contou ...

J – (risos)

K – (risos)

L – Ah gente, mas ele largou dela já faz tempo.

J – Ah, e ela passa mal agora! E o nosso café? Tá, mas faz quanto tempo?

K – É, faz quanto tempo?

L – Ah, faz tempo. Umas três semanas.



J – E a estória continuaria, mas os meus risos abafados me causam um certo desconforto, e me impedem de prosseguir. Então pararei por aqui.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

↕ Clarice

Não me olhe assim. Ao olhar nos olhos de alguém, podemos deixar o outro vulnerável, pois entramos em contato com o que há de mais frágil e fétido em uma pessoa: a sua alma. Muito embora ela devesse temer os momentos que estavam por vir, ela não o fez. Como prestes a gozar, ela se deixou olhar no fundo dos seus olhos. Entretanto, nada que já não fosse de conhecimento público foi descoberto. Ao olhar em seus olhos ela viu refletido no espelho, o quanto é covarde.
Então na tentativa de fugir de si mesma, sai da frente do espelho emoldurado na parede verde da sala. Passou quase uma hora ali, parada, mirando-se. Mas a resposta não veio. Tentava responder a pergunta que chegou há pouco com um buquê de flores vermelhas. Talvez a resposta venha com uma xícara de café.
Sete horas em ponto. Um rapaz de uniforme azul aconchega levemente um buquê de rosas vermelhas entre seus braços. E antes que os espirros viessem à tona, ela lê no cartão a seguinte pergunta, “Por que você fuma?” O dono do garrancho ainda reforçou a sua intenção de censura, só que agora com uma afirmação, “Você sabe que isso mata.”
É incrível a avareza humana. Constantemente fazemos coisas que nos matam, sem nos darmos conta de tal façanha. O mal caminha de mãos dadas com qualquer pessoa, é fato. Se não fazemos mal a nós mesmos, então fazemos aos outros. Ela, pra não fazer mal aos outros, faz a si mesma. Na verdade, acredito que ela não seja capaz de fazer mal a ninguém, pois tampouco é capaz de fazer algum tipo de bem. Então reverte toda causa e efeito, para si.
Poucos sabem, mas a família de qual viera tinha uma crença de que, “A mulher ao dar a luz tem a saúde revigorada”. Deve ser coisa de quem acredita em Deus. Sua mãe, que sofria dos nervos desde o nascimento da segunda filha, piorava a cada dia. Então, enquanto se formava no ventre daquela a qual intitulavam “louca”, o peso de devolver o discernimento e a lucidez àquela mulher – e a função de lhe tapar os olhos e os ouvidos para que deixasse de ver e ouvir o que ninguém mais via ou ouvia – a ela foi dado de presente. Lhe aconchegaram a tal missão no colo, da mesma forma em que aconteceu minutos atrás, quando recebeu as tais flores.
Entretanto, tal esmero foi em vão – como todas as coisas que cabem a ela, o resultado é sempre em vão. Aconteceu que ao nascer, a mãe não quis a ver. Temia, gritava, toda vez que aproximavam a menina dela. Bom, isso ela não sabe, pois ainda era muito nova quando tal espetáculo acontecia. Por fim, sete anos após a cura ter nascido, a enferma morre. Ela foi perdoada pela família, mas nunca se perdoou.
Sendo assim, por não ter conseguido salvar a vida da progenitora, toma nota e decide dar cabo da sua. Foi esse o pensamento que acabou de ter, enquanto com certo blasé, em silêncio prepara seu café. E no primeiro gole, descobre que peca, “Peco por gostar do gosto azedo da solidão.” Afinal, o vazio do silêncio sempre esteve ao seu lado. Enfim, conclui que o que comete consigo é um suicídio, em parcelas. “Melhor do que se jogar da janela.”
Sente que vai voltar a espirrar, então lembra das flores. Agora, enquanto segura a dúzia de rosas vermelhas, descobre que o que faz a cada dia é dar um passo em direção ao beijo da morte, e que nunca foi, nem nunca será mulher de flores, “É nunca serei mulher para ganhar flores, preferia um maço de cigarros, deles não tenho alergia. Não as quero nem no meu funeral. Velas e flores quando juntas formam um odor nada agradável."
Finalmente jogou as flores no lixo. Em seguida, pegou um vinil da Janis, e fez com que na vitrola velha A Woman Left Lonely começasse a ser cantada. Acendeu um cigarro, e terminou de tomar o café, que agora estava frio.





A woman left lonely will soon grow tired of waiting,
Boomp3.com










domingo, 17 de agosto de 2008

↕ Blackbird, fly

A língua secreta dos pássaros é um dialeto falado por poucos. Sorte de quem o fala. Sorte de quem o entende. Sorte tenho eu, por ter você pra me ouvir e fazer companhia: o silêncio.