segunda-feira, 25 de agosto de 2008

↕ Clarice

Não me olhe assim. Ao olhar nos olhos de alguém, podemos deixar o outro vulnerável, pois entramos em contato com o que há de mais frágil e fétido em uma pessoa: a sua alma. Muito embora ela devesse temer os momentos que estavam por vir, ela não o fez. Como prestes a gozar, ela se deixou olhar no fundo dos seus olhos. Entretanto, nada que já não fosse de conhecimento público foi descoberto. Ao olhar em seus olhos ela viu refletido no espelho, o quanto é covarde.
Então na tentativa de fugir de si mesma, sai da frente do espelho emoldurado na parede verde da sala. Passou quase uma hora ali, parada, mirando-se. Mas a resposta não veio. Tentava responder a pergunta que chegou há pouco com um buquê de flores vermelhas. Talvez a resposta venha com uma xícara de café.
Sete horas em ponto. Um rapaz de uniforme azul aconchega levemente um buquê de rosas vermelhas entre seus braços. E antes que os espirros viessem à tona, ela lê no cartão a seguinte pergunta, “Por que você fuma?” O dono do garrancho ainda reforçou a sua intenção de censura, só que agora com uma afirmação, “Você sabe que isso mata.”
É incrível a avareza humana. Constantemente fazemos coisas que nos matam, sem nos darmos conta de tal façanha. O mal caminha de mãos dadas com qualquer pessoa, é fato. Se não fazemos mal a nós mesmos, então fazemos aos outros. Ela, pra não fazer mal aos outros, faz a si mesma. Na verdade, acredito que ela não seja capaz de fazer mal a ninguém, pois tampouco é capaz de fazer algum tipo de bem. Então reverte toda causa e efeito, para si.
Poucos sabem, mas a família de qual viera tinha uma crença de que, “A mulher ao dar a luz tem a saúde revigorada”. Deve ser coisa de quem acredita em Deus. Sua mãe, que sofria dos nervos desde o nascimento da segunda filha, piorava a cada dia. Então, enquanto se formava no ventre daquela a qual intitulavam “louca”, o peso de devolver o discernimento e a lucidez àquela mulher – e a função de lhe tapar os olhos e os ouvidos para que deixasse de ver e ouvir o que ninguém mais via ou ouvia – a ela foi dado de presente. Lhe aconchegaram a tal missão no colo, da mesma forma em que aconteceu minutos atrás, quando recebeu as tais flores.
Entretanto, tal esmero foi em vão – como todas as coisas que cabem a ela, o resultado é sempre em vão. Aconteceu que ao nascer, a mãe não quis a ver. Temia, gritava, toda vez que aproximavam a menina dela. Bom, isso ela não sabe, pois ainda era muito nova quando tal espetáculo acontecia. Por fim, sete anos após a cura ter nascido, a enferma morre. Ela foi perdoada pela família, mas nunca se perdoou.
Sendo assim, por não ter conseguido salvar a vida da progenitora, toma nota e decide dar cabo da sua. Foi esse o pensamento que acabou de ter, enquanto com certo blasé, em silêncio prepara seu café. E no primeiro gole, descobre que peca, “Peco por gostar do gosto azedo da solidão.” Afinal, o vazio do silêncio sempre esteve ao seu lado. Enfim, conclui que o que comete consigo é um suicídio, em parcelas. “Melhor do que se jogar da janela.”
Sente que vai voltar a espirrar, então lembra das flores. Agora, enquanto segura a dúzia de rosas vermelhas, descobre que o que faz a cada dia é dar um passo em direção ao beijo da morte, e que nunca foi, nem nunca será mulher de flores, “É nunca serei mulher para ganhar flores, preferia um maço de cigarros, deles não tenho alergia. Não as quero nem no meu funeral. Velas e flores quando juntas formam um odor nada agradável."
Finalmente jogou as flores no lixo. Em seguida, pegou um vinil da Janis, e fez com que na vitrola velha A Woman Left Lonely começasse a ser cantada. Acendeu um cigarro, e terminou de tomar o café, que agora estava frio.





A woman left lonely will soon grow tired of waiting,
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