quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Sobre 2014



Foi o ano em que, certamente, mais questionei a existência, o que culminou em dezenas de textos iniciados e não concluídos. Boa parte deles, escritos numa escrivaninha no estilo vitoriano, madeira rústica – meu primeiro espaço condizente para leitura e escrita nesses vinte e cinco anos. Verdade seja dita, não há lugar para a inspiração, ela vem sem cerimônia, naquele momento do sono que antecede os sonhos, no andar pela calçada, no movimento de um louva-a-deus, ou na chuva que desenha um rosto na janela. O que ficou ainda mais evidente neste ano. 


Descobri músicas e autores – não tanto quanto gostaria, mas foi um ano de boas surpresas. Me vi nas canções do Phill Veras, persegui Ricardo Darin em seus filmes. Soa óbvio reverenciar o cinema argentino, mas ele iluminou os meus finais de semana. De Lima, Paris, Londres e Tóquio, Mario Vargas Llosa me mostrou um homem loucamente apaixonado, que me ganhou apesar do extremo. Também elucidou uma página política e social da América do Sul, até então ignorada por mim. Teve ainda Carlos Ruiz Zafón, com Daniel, Carax e Fermín Romero de Torres, que me conduziram pelas ruas de Barcelona em suas histórias. Mas foi no filme sobre Simone de Beauvoir e Violette Leduc, que compreendi a diferença entre a escrita existencial e a visceral – pertenço à primeira. 


Foi o ano em que, além da escrita e da fotografia, cozinhar também passou a funcionar como uma terapia, incrivelmente gratificante. Então me vi pesquisando sobre Julia Child e desejando (muito) livros de receita e utensílios domésticos. Também me permiti a fotografar profissionalmente, onde pude conhecer pessoas e histórias inspiradoras – uma barreira em processo de derrocada.


Passei a respeitar os personagens da Marvel – respeitar de verdade. Vacilei diante da biografia de Virgínia Woolf, porque ela ainda me machuca. Entrei na academia, mas foi ao praticar dança (depois dos 24) que libertei meu corpo. No dia a dia, aperfeiçoei meu ofício, aprendi muito e presenciei, na prática, como o jornalismo profissional pode fazer a diferença, traçar um diálogo verdadeiro e informar com qualidade nas redes sociais.


Também foi um ano de eleições, onde opiniões divergentes imperaram. Triste foi ver deturparem a democracia que lutamos tanto para reconquistar, assim como se ampararem numa liberdade de expressão corrompida por lama e egoísmo. Do ódio vazio, quiseram dividir o país, graças ao esquecimento de outrora. Esperança ao que está por vir.  


Mas o que ficou mesmo desse ano foi o amor, capaz de vencer tudo. E aquele trecho forte da canção que diz “Eu sou, eu sou, eu sou o amor, da cabeça aos pés”, dos Novos Baianos, finalmente começou a fazer sentido. Porque os dias só valem realmente à pena quando a gente passa a reconhecer, nos gestos mais simples, a presença dele – quando reconhecemos e devolvemos a mesma dose, sem enigmas ou amarras.


O que eu quero para 2015, além de amor? Muita paz, sobretudo de espírito.




terça-feira, 25 de novembro de 2014

À chuva



Sou grata à chuva
Capaz de inundar
A terra seca e erma
De vida e querer.

Acaricia narizes
Olhos, bocas
E corações.

Um afago alento
Que no rosto
Vem macio, cuidadoso
Como fazemos com
Recém nascidos.

Embora com pés
Cansados nessa
Rotina que ensina
Suga e desanima
E queima no sol
Impiedoso.

Vimos na chuva
Despretensiosa,
Valiosa lição
Cuja gratidão de tê-la.

Nos olhos, bocas
E corações.

Inunda as mentes
Vazias de comoção
Do que não é supérfluo
E de tão valioso,
Nada cobra, apenas
Gratidão.


ps: Numa terça-feira chuvosa de novembro.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Findar os finados



Era umas oito horas da manhã quando vi a dona Isaura, do outro lado do muro, varrendo a calçada. Céu azul, umas nuvens brancas rastejantes indicando que, provavelmente à tardinha, iria chover. Calor, brisa morna de início de novembro. Entro, encho uma xícara de café, ligo o rádio. Então, escuto que o caminhoneiro Sebastião Rodrigues sofreu um acidente na rodovia, capotou o caminhão com carga de areia numa curva qualquer. Estremeci. Era o seu Tião, marido da dona Isaura.

Olhei pela janela, dona Isaura continuava lá fora, agora, molhando as plantas. Ela ainda não sabia. A manhã continuava serena, fingindo ser normal. De repente, dois carros estacionam, são os filhos que moram em outra cidade. Depois, só ouvi o “não é verdade, não é verdade”, repetitivo, no compasso de um choro seco de quem sabe sentir dor – uma dor comum e ainda assim nova naquele peito enrugado. Tião, sempre brincalhão, deu adeus justo no Dia dos Finados. Soa muito áspero achar engraçado?

O dia é deles, para eles. Mas, e o dia de quem fica, é quando? Aquela dor, do choro contido, do cisco no olho que persegue o olhar abatido da mãe que, ainda jovem, não quer que a filha perceba que a ausência do pai é mais forte do que a beatitude de vê-la crescer.

Hoje, pensando nessa mãe, em Isaura e Tião, lembro de outra pessoa, Dirce; zelosa pelo afilhado que mal pôde segurar nos braços. A criança nasceu bem doentinha, foi batizada em casa e, dias depois, faleceu. Hoje, teria a minha idade: seria um rapaz, de 24 anos. Os pais se separaram, mudaram de cidade e, há anos, não visitam o túmulo do filho Ricardo. Ainda aqui, por perto, Dirce sempre lembra daquele afilhado, o visita e cuida com capricho do túmulo de mármore que, hoje, ganhou um lindo arranjo de flores.

Há também o medo de morrer. Todo mundo, em determinado momento da vida, passou pelo tortuoso medo da morte. Uns, por não aceitarem o finito que norteia a vida. Outros, pelo medo do que encontrarão do outro lado. Hoje, estamos aqui, esperando as matilhas de cada dia, resgatando os nossos mortos. Mas, e amanhã? Quando chegarmos aos 80 e o amanhã não anunciar futuro, vamos acordar num dia como hoje tremendo, com medo dela?

Mais tarde, perto das 18h, o tom rosado do céu tinha como trilha sonora um “parabéns pra você”, num coro de vozes que, juntas, não somavam meia dúzia de anos. Um dos netos do seu Tião estava de aniversário. A família não quis apagar a data querida e comemorou com as crianças. Dava pra sentir, no quase gemido dos mais velhos, que a dor latejava. Mas qual é o peso dela, diante do amanhã?

Penso nesse momento breve e tortuoso, quando vida e morte se encontram sem aviso prévio; e a primeira prevalece. Também imagino os pais de Ricardo, o afilhado de Dirce, que amparados pelo “fingir” ignoraram o filho morto. Então me pergunto se o esquecimento é concebível; mesmo que seja efêmero, contra vontade, ou até mesmo mesquinho. O considero aceitável, sim. Se não para todos, para alguns certamente é. Talvez seja, para o lado que mais sente dor. Vai ver o esquecimento seja cria do egoísmo, disfarçado de antídoto para a dor. Não condeno. Afinal, em algum momento, é preciso findar os finados, caso contrário não há vida, só saudade. 

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Vagarosa


A lentidão tem me dado sustos. Não é o sopro vagaroso dos dias, esses correm depressa. O que me assusta e por vezes inquieta são meus reflexos e raciocínio. Ando esquecendo palavras, a pronúncia e a grafia. Leio, releio, encontro erros incomuns a mim. Estou vacilando no que faço de melhor e isso me tortura. Não é só na escrita, é na rotina, nos diálogos; histórias ficam pela metade, são assombradas pelo esquecimento repentino que surge e toma de mim o que me conduzia no instante anterior. Fico ali, inerte num vazio, sem ter como pedir ajuda, tentando reencontrar o que perdi no meio da neblina que de repente envolveu a minha alma. É como se alguém maior, mais forte, me puxasse pelo braço com firmeza enquanto ando pela rua distraída; no susto, vou ao chão. Estremeço. Pode ser uma fase, pode ser que amanhã não aconteça mais. Ou, quem sabe, seja o meu temor de nome alemão dando os primeiros acenos. Hoje, me vi novamente diante do erro, me apoiando no espasmo entre o meu estômago e o coração. Ai habita outra premissa, aquela de que todos estão sujeitos a erros. Então percebo que aceitar o erro é tão digno quanto reconhecê-lo. Mas essa leveza vem como um beija-flor que, sem saber, chegou e foi embora depressa, levando consigo o “keep calm” que eu usaria para encarar o rotineiro vacilar. Afinal, inconcebível é ser indiferente, ou até otimista, diante dessas visitas que, aos poucos, se tornam comuns. Por isso, tranquei a porta – a lentidão pode até forçar o trinco, insistir com ar dócil, mas não cederei. Mas e quando, depois de ensaiar um recesso, ela surge numa tola receita de bolo (de caixinha)? Fico ali, aceitando que não haverá bolo de laranja no café da manhã, amanhã. Suspiro. Há quem diga que todo mal pode ser anulado com uma boa noite de sono.  Acredito nisso. Que a condição de vagarosa se torne efêmera dentro de mim; e se dissipe, entre o sono e o despertar.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Entre estar e pertencer



Na cozinha, acomodada na cadeira que precisa de conserto, o segundo momento mais alegre do dia: anoitecer, com a cabeça vazia de trabalho, banho tomado, minha única preocupação é comer um pedaço de bolo de cenoura e tomar o meu chá. Já faz um tempo que peguei o costume de ligar o rádio enquanto me concentro em não cometer nenhum ato de gula extrema. Hoje, ouvi ao acaso uma daquelas mensagens de motivação que antecedem a Voz do Brasil. Um homem imitando Cid Moreira leu um trecho bíblico do livro de Mateus. O texto denota que basta uma fé do tamanho de um grão de mostarda para alcançar o impossível. Bonito. Indiferente de crer ou não, de ser cristão ou não, é inegável a beleza das histórias narradas na Bíblia. Nesse caso, um lembrete sorrateiro de que não há nada mais triste do que a desesperança. Mas evitá-la é tão difícil. “Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu”, aqui, na calmaria do fim do dia, Chico sussurra dentro da minha cabeça. Em momentos assim, a canção martela, vira enxaqueca. Mas o leão do meu eu, esse que tenho que matar todos os dias, está na distância entre os olhos azuis do menino que entrevistei essa semana – tagarela e inquieto para dar sua opinião – e seus pés embarrados, protegidos do chão por chinelos de dedo na manhã mais fria do ano. Não havia nenhum vestígio de tristeza naqueles olhos. Por quê? É o peso das meias que impedem as pessoas de sorrir? Lembro desse menino, vejo outro, aquele que vi dar os primeiros passos; e hoje dá lição. Meu irmão destinou parte do primeiro salário num jogo de cordas para o seu violoncelo. Talvez ele desconheça, mas está numa realidade paralela da juventude que pertence. Antes disso tudo – do Chico, do menino dos pés gelados, das cordas para violoncelo, do banho, do chá, da Bíblia, do devaneio – quando cheguei em casa do trabalho, um bolo de cenoura havia sido recém colocado no forno. Em cima da mesa, a bacia com o restinho da massa me esperava – um ritual que eu e minha mãe mantemos desde que eu era menina. Trinta e cinco minutos depois, pronto! No primeiro pedaço a acidez do dia ficou doce. Há uma distância feroz entre estar triste e pertencer à tristeza. Feroz porque entre uma condição e outra, paira a desesperança. Não há nada mais penoso do que uma vida sem esperança – sem fé em algo ou em si. Dias podem ser como a aquela canção, uma vida inteira não. Então eis o primeiro momento mais alegre do meu dia: é pela manhã, quando saio da cama, prendo o cabelo antes de ir pro banho e paro diante da janela: abro um pedaço da cortina e olho o céu; encaro o tempo, descubro o humor do amanhecer. Hoje, um tom avermelhado, um manto dourado nas bordas pelo sol sonolento que despertava, me dava bom dia como quem diz: recomece.