terça-feira, 4 de novembro de 2014

Findar os finados



Era umas oito horas da manhã quando vi a dona Isaura, do outro lado do muro, varrendo a calçada. Céu azul, umas nuvens brancas rastejantes indicando que, provavelmente à tardinha, iria chover. Calor, brisa morna de início de novembro. Entro, encho uma xícara de café, ligo o rádio. Então, escuto que o caminhoneiro Sebastião Rodrigues sofreu um acidente na rodovia, capotou o caminhão com carga de areia numa curva qualquer. Estremeci. Era o seu Tião, marido da dona Isaura.

Olhei pela janela, dona Isaura continuava lá fora, agora, molhando as plantas. Ela ainda não sabia. A manhã continuava serena, fingindo ser normal. De repente, dois carros estacionam, são os filhos que moram em outra cidade. Depois, só ouvi o “não é verdade, não é verdade”, repetitivo, no compasso de um choro seco de quem sabe sentir dor – uma dor comum e ainda assim nova naquele peito enrugado. Tião, sempre brincalhão, deu adeus justo no Dia dos Finados. Soa muito áspero achar engraçado?

O dia é deles, para eles. Mas, e o dia de quem fica, é quando? Aquela dor, do choro contido, do cisco no olho que persegue o olhar abatido da mãe que, ainda jovem, não quer que a filha perceba que a ausência do pai é mais forte do que a beatitude de vê-la crescer.

Hoje, pensando nessa mãe, em Isaura e Tião, lembro de outra pessoa, Dirce; zelosa pelo afilhado que mal pôde segurar nos braços. A criança nasceu bem doentinha, foi batizada em casa e, dias depois, faleceu. Hoje, teria a minha idade: seria um rapaz, de 24 anos. Os pais se separaram, mudaram de cidade e, há anos, não visitam o túmulo do filho Ricardo. Ainda aqui, por perto, Dirce sempre lembra daquele afilhado, o visita e cuida com capricho do túmulo de mármore que, hoje, ganhou um lindo arranjo de flores.

Há também o medo de morrer. Todo mundo, em determinado momento da vida, passou pelo tortuoso medo da morte. Uns, por não aceitarem o finito que norteia a vida. Outros, pelo medo do que encontrarão do outro lado. Hoje, estamos aqui, esperando as matilhas de cada dia, resgatando os nossos mortos. Mas, e amanhã? Quando chegarmos aos 80 e o amanhã não anunciar futuro, vamos acordar num dia como hoje tremendo, com medo dela?

Mais tarde, perto das 18h, o tom rosado do céu tinha como trilha sonora um “parabéns pra você”, num coro de vozes que, juntas, não somavam meia dúzia de anos. Um dos netos do seu Tião estava de aniversário. A família não quis apagar a data querida e comemorou com as crianças. Dava pra sentir, no quase gemido dos mais velhos, que a dor latejava. Mas qual é o peso dela, diante do amanhã?

Penso nesse momento breve e tortuoso, quando vida e morte se encontram sem aviso prévio; e a primeira prevalece. Também imagino os pais de Ricardo, o afilhado de Dirce, que amparados pelo “fingir” ignoraram o filho morto. Então me pergunto se o esquecimento é concebível; mesmo que seja efêmero, contra vontade, ou até mesmo mesquinho. O considero aceitável, sim. Se não para todos, para alguns certamente é. Talvez seja, para o lado que mais sente dor. Vai ver o esquecimento seja cria do egoísmo, disfarçado de antídoto para a dor. Não condeno. Afinal, em algum momento, é preciso findar os finados, caso contrário não há vida, só saudade. 

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