terça-feira, 4 de março de 2014

A fotografia, a guerra e os livros


No meu caso, os livros nunca vêm à toa. Sempre condizem com algum aspecto que vivi - quase sempre abordam o que vivo no momento em que os leio. Os que trazem alguma lição, volte e meia regressam aos meus dias. Foi assim com "A insustentável leveza do ser". O livro aborda diversas questões existenciais, não é difícil se reconhecer no mundo de Milan Kundera, tampouco relembrar alguma passagem vivida por Tomas e Tereza. Ter o lido durante a faculdade, justo quando o fotojornalismo começava a me fascinar, foi ainda mais enriquecedor. Através de Tereza, o livro retrata a representatividade do jornalismo e da fotografia em momentos de conflito. O cenário é a Primavera de Praga, mas Kundera revisita o início do fotojornalismo e nos lança à história, rememorando que os primeiros registros do gênero ocorreram na cobertura da Guerra da Crimeia (1853-1856).

Mas essa passagem voltou a ser atual: os olhos do mundo estão na Ucrânia, onde os conflitos prometem se intensificar e a guerra anuncia revisitar as ruas da Crimeia. Ontem, enquanto folheava um jornal catarinense, uma foto mostrava militares e civis dividindo o mesmo espaço – uma mulher atravessava a rua com uma criança, talvez mãe e filho, enquanto meia dúzia de militares bem armados preenchia a via. O título da matéria era “Rússia mostra armas e dialoga”. A sensibilidade de uma foto pode sim dispensar o texto, é a pura verdade. Dias atrás, outra imagem me chamou atenção: na Síria, pedestres desviavam de corpos em uma calçada, na tentativa de seguir ou forçar a rotina – enquanto no ar predominava o cheiro da guerra.

Há um mapa da Ucrânia na biografia que Benjamin Moser escreveu sobre Clarice Lispector – desde que li esse livro, a Ucrânia ficou mais próxima de mim.  Hoje, imagino o que Clarice diria, ao rever uma guerra semelhante a que fez sua família fugir do país no inverno de 1921, buscando refúgio no Brasil. Diria, com o R pesado: “quando escrevi que viver não é vivível, era sobre isso, menina: guerra, fome, covardia”.

Engraçado, Milan Kundera inicia "A insustentável leveza do ser" com a seguinte indagação: "O eterno retorno é uma ideia misteriosa e, com ela, Nietzsche pôs muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo foi vivido e que tal repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito?".

Ouso responder: significa que a ignorância humana se renova, na medida que permanece imutável. A guerra é o único feito onde podemos generalizar, sem medo de cometer equívocos; a trivialidade dos motivos sempre serão os mesmos – as cicatrizes na alma das vítimas, na alma do universo, também. É possível sentir tudo isso, em uma única foto.

Minha admiração aos correspondentes de guerra, que tornam o fotojornalismo humano, sensível e visceral.

sábado, 1 de março de 2014

Passageiro



Essas viagens a São Lourenço do Oeste, percurso de 30 quilômetros, apesar de curtas conseguem ser exaustivas. Ao menos uma vez por semana faço o trajeto que, ironicamente, me leva ao estado vizinho de Santa Catarina. Hoje, assim como em todas as quartas-feiras – dia da semana em que a empresa de água mineral em que trabalho me envia para o oeste catarinense – eu, preso num corpo sólido, conduzido por uma mente vazia, queria evaporar. O calor e o terno são os principais responsáveis pela fadiga e falta de entusiasmo. Preciso de férias.


Mal entrei no ônibus e já comecei espirrar. Cheguei cedo.  O relógio marcava 08h10 e o ônibus deveria seguir viagem por volta das 08h20. A antecedência sempre foi proposital. A tática objetiva escolher o melhor lugar, de preferência do lado direito, não muito atrás, não muito na frente – baseando-se em estatísticas, saber quais são os lugares mais seguros para ocupar num ônibus em caso de acidente em rodovia é uma questão de sobrevivência.  Outra vantagem é que ninguém senta do meu lado. Gosto de deixar a barba por fazer nas quartas-feiras, de exibir meus óculos Ray-ban e de usar o fone e ouvido, assim espanto a hospitalidade interiorana.


Tudo seguia bem – note o verbo no passado. Quando dei por mim, sentado ao meu lado havia um senhor alto, magro e grisalho, com aspecto de doente. Apesar do calor, ele usava uma boina de inverno, bem surrada, que exalava um cheiro desagradável de suor e cabelo molhado. Sem hesitar, nem se importar com a minha indiferença, perguntou:


- Você vai pra Chapecó, rapaz?

- Não, vou pra São Lourenço do Oeste.

- Ah sim, perto de Navegantes.

- Não, Navegantes é no litoral – lamentei: se não tivesse corrigido o velho, a conversa poderia ter encerrado ali!

- Tem parentes em São Lourenço, rapaz?

- Não. Viagem de trabalho.

- Qual é teu nome?

- Alberto.

- E o sobrenome?

- Fianco. Albero Fianco.

- Você não tem cara de Alberto. É alemão ou italiano?

- Os dois. Como todo mundo por aqui, tenho um pouco dos dois.

- Eu sou bugre! – disse todo orgulhoso. E continuou: meu pai era gaúcho, do Rio Grande o Sul, tchê.


Ele falava tão alto que eu tinha a certeza que todo mundo no ônibus prestava atenção no diálogo – que me tinha como parte integrante na condição de vítima.


- Já você, rapaz, então é alemão da Alemanha! – Disse isso e sorriu, meio zombeteiro. Um curto silêncio antecedeu o próximo espasmo em forma de divagação.


- Já perdi três pessoas da minha família. Estão mortas. Uma delas, meu filho. Mataram o meu filho, sabe.


Senti a voz do homem tremer antes de prosseguir. Como se num esforço mortal, continuou; o que nessa altura já era um monólogo.


- Mataram o meu filho, na frente daquela boate chamada Aquários. Meu filho era capoeirista, faixa preta no karatê, ninguém ganhava dele na luta. Uma vez veio até um rapaz de Curitiba lutar com ele. A luta foi na praça, meu filho venceu. Mas uma noite ele estava parado na frente da boate, com a namorada dele. Chegou um homem e atirou no meu filho. Matou o meu filho. Eu sei que esse homem hoje tá puxando brasa pro capeta! – ficou quieto, em seguida completou: Meu filho era tão bonito, tinha o cabelo comprido, até os ombros.


Nesse momento todos os passageiros ouviam a história sem disfarçar. Quando o ônibus ganhou os primeiros movimentos, o homem soltou a última frase da viagem: “Vamos com Deus, que a virgem Maria proteja a nossa viagem”. Disse com fervor, com intenção de ser ouvido por todos. Depois disso, dormiu. 


E eu, enquanto processava a história toda, me sentia insustentavelmente confortável, leve com o calor do sol que invadia a janela e tomava o meu assento. Aos poucos, o calor ganhava intensidade enquanto dançava no asfalto quente, fazendo meu rosto arder.