Essas viagens a São Lourenço do
Oeste, percurso de 30 quilômetros, apesar de curtas conseguem ser exaustivas.
Ao menos uma vez por semana faço o trajeto que, ironicamente, me leva ao estado
vizinho de Santa Catarina. Hoje, assim como em todas as quartas-feiras – dia da
semana em que a empresa de água mineral em que trabalho me envia para o oeste
catarinense – eu, preso num corpo sólido, conduzido por uma mente vazia, queria
evaporar. O calor e o terno são os principais responsáveis pela fadiga e falta
de entusiasmo. Preciso de férias.
Mal entrei no ônibus e já comecei espirrar. Cheguei cedo. O relógio marcava 08h10 e o ônibus deveria
seguir viagem por volta das 08h20. A antecedência sempre foi proposital. A tática
objetiva escolher o melhor lugar, de preferência do lado direito, não muito
atrás, não muito na frente – baseando-se em estatísticas, saber quais são os
lugares mais seguros para ocupar num ônibus em caso de acidente em rodovia é
uma questão de sobrevivência. Outra vantagem
é que ninguém senta do meu lado. Gosto de deixar a barba por fazer nas
quartas-feiras, de exibir meus óculos Ray-ban e de usar o fone e ouvido, assim
espanto a hospitalidade interiorana.
Tudo seguia bem – note o verbo no
passado. Quando dei por mim, sentado ao meu lado havia um senhor alto, magro e
grisalho, com aspecto de doente. Apesar do calor, ele usava uma boina de
inverno, bem surrada, que exalava um cheiro desagradável de suor e cabelo
molhado. Sem hesitar, nem se importar com a minha indiferença, perguntou:
- Você vai pra Chapecó, rapaz?
- Não, vou pra São Lourenço do
Oeste.
- Ah sim, perto de Navegantes.
- Não, Navegantes é no litoral – lamentei:
se não tivesse corrigido o velho, a conversa poderia ter encerrado ali!
- Tem parentes em São Lourenço,
rapaz?
- Não. Viagem de trabalho.
- Qual é teu nome?
- Alberto.
- E o sobrenome?
- Fianco. Albero Fianco.
- Você não tem cara de Alberto. É
alemão ou italiano?
- Os dois. Como todo mundo por
aqui, tenho um pouco dos dois.
- Eu sou bugre! – disse todo
orgulhoso. E continuou: meu pai era gaúcho, do Rio Grande o Sul, tchê.
Ele falava tão alto que eu tinha
a certeza que todo mundo no ônibus prestava atenção no diálogo – que me tinha
como parte integrante na condição de vítima.
- Já você, rapaz, então é alemão
da Alemanha! – Disse isso e sorriu, meio zombeteiro. Um curto silêncio
antecedeu o próximo espasmo em forma de divagação.
- Já perdi três pessoas da minha
família. Estão mortas. Uma delas, meu filho. Mataram o meu filho, sabe.
Senti a voz do homem tremer antes
de prosseguir. Como se num esforço mortal, continuou; o que nessa altura já era
um monólogo.
- Mataram o meu filho, na frente
daquela boate chamada Aquários. Meu filho era capoeirista, faixa preta no
karatê, ninguém ganhava dele na luta. Uma vez veio até um rapaz de Curitiba
lutar com ele. A luta foi na praça, meu filho venceu. Mas uma noite ele estava
parado na frente da boate, com a namorada dele. Chegou um homem e atirou no meu
filho. Matou o meu filho. Eu sei que esse homem hoje tá puxando brasa pro
capeta! – ficou quieto, em seguida completou: Meu filho era tão bonito, tinha o
cabelo comprido, até os ombros.
Nesse momento todos os
passageiros ouviam a história sem disfarçar. Quando o ônibus ganhou os
primeiros movimentos, o homem soltou a última frase da viagem: “Vamos com Deus,
que a virgem Maria proteja a nossa viagem”. Disse com fervor, com intenção de
ser ouvido por todos. Depois disso, dormiu.
E eu, enquanto processava a
história toda, me sentia insustentavelmente confortável, leve com o calor do sol
que invadia a janela e tomava o meu assento. Aos poucos, o calor ganhava
intensidade enquanto dançava no asfalto quente, fazendo meu rosto arder.
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