terça-feira, 8 de julho de 2008

↕ As bromélias de Dolores

Na casa verde da esquina mora uma cartomante viciada. Maria é seu nome. Um jovem cafona vê uma moça bonita morrer em seus minguados braços. A moça bonita tem como a última visão de sua curta vida, o óculos fundo de garrafa do jovem cafona. Alguém ouve Free Bird às sete horas de uma manhã de outono. Por fim, bromélias são cultivadas no túmulo 1912.

A vizinhança dorme. Não porque seja tarde ou demasiadamente cedo, mas em dias chuvosos a quietude e a alienação da pacata cidadezinha se tornam mais evidentes.
Dolores depois de muito divagar, guardou uns trocados e decidiu visitar Maria. Saiu de casa logo que o sol se pôs, andando de mancinho, com receio de que o assoalho velho e extirpado estralasse e acordasse os avós.
Já fora de casa, o ar era leve, típico das manhãs chuvosas de outono. Segurava na mão esquerda um guarda-chuva vermelho, enquanto disputava espaço com a água e as folhas secas que cobriam a rua. Aquela quietude lhe revigorou a alma.
Mas a sensação de gozo foi quebrada pelo tênue cheiro enjoativo de velas aromáticas e incensos, que lhe embrulhou o estômago. A sala era escura. O assento da cadeira um tanto quanto duro. Na sua frente, uma mesa pequena, com uma toalha vermelha. Duas velas, uma preta e outra branca. Um copo com água. Por fim, um tarô envolvido por um lenço preto. O lenço se abre e a pilha de cartas é liberta. “Corte em três maços com a mão direita”. Sem delongas, um jogo de frases perfeitas é jogado em seu colo: “Você será uma jornalista de renome. Trabalhará na Folha de São Paulo. Casará com um músico. Terá a casa no campo que tanto almeja e aquela pilha de vinis que tanto cobiça. Dará a luz à dois filhos, e não deixará de ser gostosa. E ainda adotará um mestiço. Ah sim, e terá uma vida longa”.
Leve como quando era criança e se perdia em meio à ciranda dançada no bosque do bairro, Dolores vai para casa. Ela está lá andando no meio da rua, guarda-chuva agora na mão direita, a mesma mão que a pouco traçou o seu destino. Vento frio no rosto, nenhum sinal de vida a pelo menos algumas quadras. Cessa os passos curtos, fecha os olhos no mesmo compasso em que abaixa o guarda-chuva. Deixa algumas gotas molharem a sua face pálida e o cabelo cor de palha que adora exibir. Nesse instante sente como se a rua fosse sua, e por alguns segundos essa sensação de posse se torna insustentável. Começa a cantar Chico Buarque “a vida é bela, a estrada é amarela...”
De repente como que saindo de algum beco qualquer, surge um jovem rapaz – o que faz Dolores engolir o canto. O jovem aparentemente carrega a mesma idade que a sua. Cabelo castanho, levemente penteado pro lado, do tipo topete, daqueles usados há uns 10 anos e que na época era moda. Roupa cafona, sapato marrom. “Meu Deus, alguém diz pra ele que é feio usar as roupas do avô, ou do pai! Santa Efigênia!" Nunca foi religiosa, mas em situações extremas ela tem a mania de clamar por Deus e por alguns santos que desconhece.
Porém, apesar de retrocesso, era bonito. Aquele rapaz lhe chamou a atenção. Acelera os passos pra tentar alcançá-lo. Já tinha tudo esquematizado na cabeça: encostaria em seu ombro, perguntaria a hora, sorriria enquanto jogaria o cabelo para trás – não, não ia seduzi-lo, mas toda e qualquer forma de aproximação requer esse procedimento – não sabia bem ao certo como falaria que ele deveria deixar a barba crescer, bagunçar o cabelo, rasgar umas calças e vestir um par de tênis furado. Mas na hora daria seu jeito.
Benjamin é um coitado. Além de nerd, é cafona. Já pensou em suicídio diversas vezes, mas sempre foi covarde para tal providência. Vai a igreja três vezes por semana, e aos vinte anos nunca conseguiu transar com Virgínia, sua namorada há quatro anos. Gosta dela – embora ela tenha mau hálito e nos últimos três anos tenha engordado consideravelmente. Sabe que sexo com a amada só depois do casamento, por isso se conforma com as punhetas que lhe visitam todas as noites. Trabalha o dia todo e no fim da tarde, quando chega em casa, precisa ser cauteloso se quiser ouvir seus vinis, pois o casal puritano de pais que tem, o proíbem de ouvir qualquer outro tipo de música que não seja gospel.
Enquanto tenta alcançar o jovem cafona, Dolores tem um breve momento de reflexão. Se pergunta se não é o retrato fatídico da mãe. Estremece, ao se ver refletida no retrato emoldurado da parede da sala, que tomado por um tom amarelado, há tempos perdeu a cor - tom amarelado de sujeira e asco. Sabe que tem o gênio do pai, mas isso sempre lhe foi indiferente, pois nunca morou com ele. Essa indiferença se torna maior agora, já que sabe que vai conseguir tudo o que deseja. De repente, tem a impressão de que algo se aproxima.
O jovem rapaz ouve um forte barulho e uma buzina ensurdecedora. Percebe que um acidente ocorreu na esquina anterior. Corre o mais rápido que as suas pernas magrelas conseguem correr. Se assusta ao ver o estado da moça, que apesar do sangue parece ser bonita.
Dolores abre os olhos, consegue sentir algumas gotas de chuva que agora caem com mais intensidade. Agora o vê mais de perto, mas antes que pudesse dizer algo, ela perde os sentidos. Dolores morre. O jovem retrocesso, depois de ligar para a ambulância, segue seu rumo. Passou alguns dias pensando na moça bonita que morreu em seus braços. Mas com o passar dos dias a lembrança desapareceu da sua memória, e ele continuou indo a igreja, com as mesmas roupas do pai. A cartomante comprou uma blusa estampada, um Carlton e dois litros de pinga com o dinheiro que cobrou da consulta que fez naquela manhã. “Cause I'm as free as a bird now, and this bird you can not change”, era a canção cantada por uma vitrola velha em uma casa amarela de portão preto, e que embalou o sono eterno de Dolores, que agora descansa em paz, no seu túmulo de bromélias.

Moral da história: Se for pra morrer, que seja ouvindo uma música boa! ;D


A música de Dolores: boomp3.com

2 comentários:

Igor Lessa disse...

Nossa, Josi; sem palavras. Que texto. Riquesa de cenário, de personagens, de bom gosto nas contruções das sentenças, rico em sinestesias... Muito bom, viu.
Aliás, você me falou no scrap que o texto era grande e eu esperei um momento de tranquilidade para vir aqui ler, pra, assim, poder fazer uma leitura mais atenta. Sabe o que aconteceu? Acabei de ler o texto e fiquei com vontade de ler mais ainda. Esse seu estilo literário, somado a sua criatividade que anda em alta, já estão pedindo um livro, viu. Ainda que um livreto, ou uma novela, quem sabe? Há uns 3 ou 4 blogs que são meus preferidos e que não deixo de visitar. Esse é um deles.
Ah sim, eu queria dizer tb que esse tema me lembrou muito um livro da Clarice Lispector.

Um grande beijo!




Olhando Pra Grama - Crônicas de um ansioso

*Raíssa disse...

Nossa, adorei o texto! Cheio de detalhes e com um leve tom de comédia. Você escreve muito bem!

A trilha está muito bem combinada com o texto. E eu adoro bromélias!

Beijos