domingo, 23 de novembro de 2008

↕ Deu por mim

Certa noite deu por mim um andarilho errante, que com um discurso pedante, com uma respiração arquejante, de mãos calejadas e face pálida, pregou de graça um sermão maçante em forma de oração; excruciante.



“Não temo a morte. Não tenho medo de polícia nem do rabudo. Não temo nada! Prefiro dormir em cemitérios. Muito embora eu não seja pomposo e qualquer obra em construção seja capaz de me aconchegar. Mas ainda assim prefiro deitar minha cabeça em epitáfios. Tenho essa preferência desde guri. Depois do dia em que as covas passaram a guardar minha santa mãezinha tenho ido dormir quase toda a noite ao lado do seu leito. É bem verdade que de santa ela nunca teve nada e que só a canonizei depois que a pobre já estava gélida e morta – tome nota que santo só vira santo se fizer milagre depois de morto!

Mas não se engane pensando que eu sempre fui sozinho no mundo. Depois da minha mãe tive mais duas mulheres. Houve um tempo onde um par de braços morenos, daquela que há muito amei, me acalentavam e me protegiam junto aos seus seios voluptuosos, nos quais eu sugava seu doce suor feito um recém nascido. Deitava minha cabeça junto ao seu peito e entrava num estado de letargia. Foi assim durante muitas noites. Mas esse tempo passou e virou passado. Hoje a morena, assim como a minha santa mãezinha, descansa em uma cova fria qualquer.

Então encontrei outra mulher. Aconteceu que numa noite como esta, enquanto eu andava torto com um litro de pinga em uma mão e um cigarro de paieiro na outra, avistei dentro de um cesto de lixo algo que refletia a cor azul. Cheguei perto e vi a minha santinha – não refiro-me a minha mãe desta vez. O azul era do seu manto de gesso. Suas mãos eram negras e suas vestes brancas. A escultura estaria em perfeito estado, se não fosse por um mísero detalhe: não tinha cabeça. Vasculhei até o fundo do lixo; lembro que quebrei algumas garrafas na afobação de encontrar a tal cabeça, mas foi em vão. Mesmo defeituosa acolhi a santa, pois veja bem: se as demais imagens santificadas nada dizem, esta, por não ter a cabeça que é o membro que acolhe a face e posteriormente a boca que é a encarregada da fala, então a ela dou um desconto! Me convenço, então, que ela não responde não porque “não quer”, mas porque “não pode”.

Então desde aquela noite eu e minha santinha seguimos pela estrada juntos; ela muda e eu descalço. Mas não se encabule, nem arregale esse lindo par de olhos para mim. Não tente adivinhar e buscar adjetivos na tentativa de saber quem eu sou. Entre ser ou não ser, prefiro ser os dois! Mas assim como eu, você nasceu de pés descalços; a diferença é que descalço eu continuo. Mas seja como for, pra que tanta pergunta? Eu que pouco sei ler e escrever conheço muito do tempo e da vida. Eu sei que a estrada que queima a sola dos meus pés e tanto me leva, é a mesma pela qual você caminha. Essa estrada me leva para o mesmo lugar que você há de ir. Pra que tanta pergunta se os meus pés descalços e os seus com sapatos de veludo vão de encontro com os mesmos vermes “na frialdade inorgânica da terra?”. É por isso que eu não temo a morte e prefiro dormir em cemitérios.

Agora, você tem um cigarro aí moça?”

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