domingo, 16 de novembro de 2008

↕Facínoras

A noite não tem lua e as ruas estão quase vazias, mas ainda há poucos boêmios andando desequilibrados pelas calsadas, lamuriando entre os becos desafinadas modinhas e tocando seus violões. Nota-se que o vinho desconsertou seus passos largos, mas é o vento forte que faz dos boêmios e de seus violões pares que dançam uma desajeitada valsa, na rua que se transformou num salão a céu aberto. Uns não agüentam o peso das pernas capengas e caem, fazendo do chão gélido seu leito. Ao longe é possível ouvir um cachorro que uiva. É um uivo abafado, o cão parece chorar.
Ali perto dentro de um bar qualquer uma vitrola velha está tocando Ray Charles. A iluminação do lugar tem um tom de sépia. Um cheiro adocicado de perfume barato se mistura ao odor de bebida e suor. Cigarros deslizam entre dedos indicadores e médios. A fumaça deixa o local com um ar denso e dificulta a visão. Mas mesmo assim é possível enxergar aqueles quatro rostos pálidos.
Quatro mulheres estão há horas dividindo uma mesa, bebendo e divagando sobre a vida – ou sobre como tirá-la. Pois, convenhamos, fora o confessionário da matriz e o divã de um bom psiquiatra, que outro lugar é o mais adequado para contar pecados e chorar mágoas do que uma mesa de bar?
Essas mulheres não têm nome. Por hora vamos chamá-las de Facínoras. Nas próximas linhas, caro leitor, você saberá o porquê de tal adjetivo.
Sobre o balcão há uma garçonete debruçada. Intrigada, ela tenta ouvir os murmúrios vindos da mesa das quatro mulheres. Mas é em vão. Ela poderia se aproximar da mesa, mas acha que conhece uma das Facínoras; e teme por isso.
Há pouco elas começaram exceder a voz e as palavras ficaram mais claras. A garçonete que está quase cochilando, agora tem um breve sobressalto e desperta, quando começa a ouvir o seguinte:

– David era o meu marido, tinha mania em arrotar. Sentia prazer fazendo aquilo. Cheguei um dia em casa irritada, no meio de uma crise de TPM, precisando de alguém para conversar e ele lá deitado no sofá assistindo futebol, tomando cerveja e arrotando. Ai eu disse: “David, por favor, pare de arrotar...”. E ele fez mais uma vez. Ai não teve jeito, peguei o 38 que ficava escondido na gaveta da cozinha, fui lá e dei dois tiros de alerta nos miolos dele.
– Eu conheci James há três anos num show. Disse pra mim que era solteiro. Transamos, nos apaixonamos, namoramos, casamos, nessa ordem. Até que descobri que de solteiro ele não tinha nada. Não só era casado, como tinha mais 6 esposas. Ai certa noite, ele descobriu que cerveja com arsênico não combinam.
– Já comigo foi diferente. Certa noite eu estava lá preparando o jantar, quando o Eduardo entrou pela cozinha agindo como um louco, gritando: “Sua vagabunda você anda tendo um caso com o vizinho?” Ele gritava e repetia sem parar. “Vagabunda, vagabunda”. Foi quando que, sem querer, ele caiu com o olho esquerdo em cima da minha faca. Caiu em cima dela 20 vezes.
– Ah, eu amava o Fred. Ele era um artista, um guitarrista. Só que ele me dizia que precisava sair toda noite pra “se encontrar”. Pra se encontrar com a Juliane, com a Indianara, com a Jozieli... Mas apesar disso não fui eu quem o matou. Provavelmente foi uma foi uma das amantes dele. Não sei qual, mas quando eu descobrir...
A garçonete que nesse instante serve a mesa, treme. E sem perceber solta o que estava guardando, “Fui eu quem o matou”.


Agora é possível ouvir o uivo do cão outra vez junto com versos desafinados de alguns bêbados que parecem o imitar, fazendo na rua um concerto; Dá para se ouvir também vindo de dentro de um bar qualquer alguns berros de mulheres e copos quebrando. Mas não se assuste pessoa, amanhã cada uma ajuntará seus cacos e irá para casa. Amanhã “chegarão em suas respectivas casas totalmente descabeladas. Se depararão com a moradia vazia e tomarão o resto de cachaça amanhecida que ficou em cima da mesa. Em seguida, fumarão igual Marias Fumaças, sem nem lembrarem mais do que aconteceu na noite anterior”.
Mas guarde segredo sobre o que acabo de lhe contar, digníssimo leitor. Não as denunciem nem as condenem, por favor. A verdade – e tome nota que verdades não são ditas com freqüência, pois sabe-se que ouvi-las não faz muito bem – é que amores entulham as covas dos cemitérios, pois são constantes entre os mortos que temos que enterrar. Afinal, que pessoa nunca assassinou um amor para continuar viva?


Facínoras:


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