quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

↕ Mártir


O sol acabou de nascer, tem seus raios ainda tímidos e a maré se faz fria. Gosto do gosto salgado do mar, da vida; que arde os olhos e que na boca forma a saliva salgada. Um gosto que quando sentido, consentido, dá sede. Sede de vida!

Sentada na areia úmida na borda do mar, sinto essa sede. Quero beber a vida, a saliva, a tua! Pode ser em um só gole, tipo martini; sem azeitona, prefiro cereja só pra adocicar – mas tem que ser intenso. Afinal, não é de todo mal, apenas às vezes, querer ser doce. Mas continuo preferindo o sal. Quero beber o sal da espuma branca que vem, tranqüila, de braços abertos, calada pedindo um abraço e que se dissipa ao encontrar meus pés.

Maria lembra mar, e vice-versa, como diz a canção. Mas o mar também lembra Marta, que lembra mártir. É por isso que eu gosto do mar – não de praia – e do seu gosto. O mar permite o martírio; traz quietude, plenitude, solidão. Me faz ver, mais nítido do que o hábito, aquilo que o espelho não reflete, e que uns chamam de alma. Almas de outrem.

Agora, o vento morno que beija meus lábios vem, num sopro, de mãos dadas com o leve cheiro de maresia. É como quando estou em casa e sinto o cheiro da chuva – o cheiro da terra amansada que se banha – num dia em que eu sei não ter chovido. Mas o sol, este, sempre vem sagaz; mas como não posso bebê-lo, vem sem gosto. Mas ele queima, inquieta e abrasa, como o amor. Mesmo que este tenha acabado de nascer e seus raios ainda sejam tímidos.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

↕ Tirésias

Ditou para si que o sentir do último suspiro – aquele instante da vida em que sapateiam diante das vistas cansadas, como que em uma regressão, os momentos mais importantes da vida do futuro cadáver em segundos – é exatamente o que sente agora. Então tem que selecionar tais momentos; susto. Não há espelhos, mas de olhos fechados contempla os traços que dizem serem seus; reflexo. Já fez isso em dias de chuva: Deitou na frescura da grama molhada e ficou ali, esperando um raio. Nada veio. Agora, deitada na terra, atirada no chão, o susto perdura. Se dá conta do quanto é pequena; pó. “Tudo não passa de uma viciosa e tortuosa repetição”, balbucia. No peito um coração teima em pulsar e na boca há um gosto de vida. Ela ainda está viva e seus olhos limpos de emoção vêem tudo azul; eu sinto, eu vejo, Narciso!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

↕ Biópsia



por Jozieli Wolff (do nome ruim) e Giancarlo Rufatto (o encrenqueiro)


Na ferroviária de uma cidade qualquer que não esta, a garota de braços cruzados espera um trem para qualquer lugar. A hora pouco importa ou o fato de estar ali há meia hora; por escolha própria foi para a estação bem antes do horário. Dor no peito, garganta seca, uma mistura de falta e vazio. Nada muito importante. Uma sensação aqui, ali, um vento morno passeia – daqueles típicos de novembro e de cidade pequena – e apenas impede que ela se dê conta que cerca de dezessete lágrimas já passaram pelo seu rosto e agora se encontram perfeitamente acomodadas sobre o queixo magrelo. Por enquanto é só.

Homem, terno azul, livros e mala de mão preta. Sete passos e meio atrás da garota do primeiro parágrafo e, assim como ela, também há algumas lágrimas cuidadosamente escondidas atrás das lentes fumes do seu óculos escuro - safra 67. Na verdade todo mundo naquele terminal havia resolvido que chorar era uma boa. As pessoas chegavam, soltavam suas malas, puxavam o lenço e aumentavam coro, a lamuria, a enchente. Então as lágrimas simplesmente deram cria. Enfim, Homem, terno azul, livros e mala de mão preta, agora parece distraído com qualquer coisa. Mentira, ele apenas está tentando desviar os olhos da garota.

Um punhado de terra úmida, pá velha, um caixão – caixa de madeira barata. Aquele som de terra seca sendo remexida ficará gravado na memória do Homem; e serão constantes as vezes que retornarão para o tic-tac das próximas noites, não mais que isso.

É ritual de passagem que haja vela iluminando sua face. Percebe-se o movimento sutil dos seus dedos longos criando notas na mesa que virou um teclado de piano – ela deveria saber que ele faz isso quando está distraído. Ela fala, ele olha vibrado a sua boca e, por isso, não está prestando atenção em suas palavras, mas finge bem o bastante – enquanto corre os olhos pelo seu decote.

O salto fino desliza sobre os paralelepípedos tortos da rua. De cabeça baixa carregando uma mala vermelha ela chega à estação. Veio o caminho todo repetindo baixinho, "Não diz mais nada, não diz mais nada". Enquanto conversavam, ela viu em seus olhos o que mais temia: ele nunca a amaria. Então ela teve que ir embora, mesmo querendo ficar.

Tome nota: soluços, dor no peito, choro. O choro é abafado, as lágrimas se misturaram com os finos pingos de chuva que começaram a cair. Água.

Na ferroviária de uma cidade qualquer que não esta, há um Homem, terno azul, segurando na mão esquerda uma mala e na direita o livro de contos de Bukowski “A garota mais linda da cidade”. Sete passos e meio atrás da garota do primeiro parágrafo e, assim como ela, também há algumas lágrimas cuidadosamente escondidas atrás das lentes fumes do seu óculos escuro. As pessoas na rua olham, ignoram a cena – não seria este o primeiro casal a brigar neste mundo e com certeza não seria o último. Ninguém sabe ainda, mas seus bilhetes são respectivamente 19 e 20 – janela a esquerda e eles deverão descer na mesma estação. O que acontecerá depois disso pouco importa, lembre-se apenas de que o fim é sempre igual: soluços, dor no peito, choro.

domingo, 14 de dezembro de 2008

↕ Aurora

Quantos homens já acordaram pela manhã após ter dormido ao lado “da mulher mais linda do mundo”?

Ela acende uma vela e coloca na janela. Apaga a luz, deita no lugar destinado a ela na cama. O quarto agora está quase escuro, quase. Umbigos nus mirando a lâmpada apagada; a conversa é vaga, digna daquelas feitas pra passar o tempo ínfimo de quem já viu o tempo passar e agora apenas espera. O teto tem seus traços medidos por palmos que insistem em não se desgrudar. As mãos entrelaçadas é um indicio de que o tratado vai começar. “Um contato abstrato de um contrato iniciado”.

Sem muitas delongas decidiram por bem iniciar o ritual. Nada muito novo para ele. Seus lençóis ensebados possuíam as mais diversas fragrâncias agridoces, que repousavam ali duas, nunca mais do que três horas. Depois de se embriagar de salivas alheias, ele entrava numa melancolia sem sentido. Ficava com os olhos vibrados no par de ponteiros do relógio, agonizante, esperando o momento de levar para casa o corpo coberto de nimbo que do seu lado estava em letargia. Só depois que estivesse sozinho na cama poderia, enfim, cessar com a dança das pálpebras, fechar os olhos e dormir. Para ele o dia nunca amanheceu com o outro lado da cama ocupado. Nunca, até aquela noite, havia compartilhado seu sono com uma mulher.

“Eu quero o peso desse fardo. Que ele se torne insustentável. Que me esmague e me prenda contra o chão, como quando o seu corpo está sobre o meu. Que ele me faça encontrar a terra úmida. Só na terra, só nela, cobertos por ela é que encontramos a essência da vida. Pó, poeira. Sem o seu fardo estarei livre, leve, eu sei. Serei leve como uma coisa qualquer, como uma poeira. Uma poeira que voa, voa, à toa. Serei uma poeira de movimentos tão livres, insignificantes”.

Dividir o sono ao lado de alguém para ele era mais comprometedor do que sexo. O roçar dos corpos. Laços entre braços, beijos trocados, línguas, umbigos unidos, caricias, malicias, porra. Ficar nu diante de alguém, pêlos pubianos dividindo o mesmo espaço dos de outrem. Tudo isso era fetiche, o gozo vinha azedo, com blasé, e isso o adocicava. Coito concluído, dormir ao lado de uma mulher era assinar um contrato. Uma sentença, morte na certa.

Ele dormiu ao som daquelas palavras. Pela manhã, ao acordar, tinha na boca seca o leve gosto de um beijo. Olhou para o lado, não havia ninguém. “Boca suja petulante, mentirosa!”, pensou. Na janela havia restos de cera da vela que havia sido acesa na noite anterior. Ele ainda não sabe, mas daqui cinco noites vai começar a acordar ao lado “da mulher mais linda do mundo”. E ele ainda estará vivo. Só agora ele estava vivo; e a aurora anunciava calada que o sol ia nascer.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

↕ Uma frase mal dita. Maldita frase!

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Ontem:

Deu no jornal... Rapaz com idade entre 20 e 24 anos comete suicídio. Branco, pesando aproximadamente 84 quilos, com 1, 78 metros de altura, mais um jovem sem nome foi levado na manhã de ontem para o IML (Instituto Médico Legal) da cidade, onde passou por diversos exames. O jovem sem nome da vez foi encontrado morto pelo zelador do prédio em que morava; na ocasião ele estava nu e tinha um tiro na boca. A data da morte ainda está indefinida.
O velho zelador conta que enquanto se equilibrava no parapeito do edifício para realizar sua atividade trimestral, que é limpar as vidraças dos apartamentos, se deparou com o jovem sem nome deitado no chão da sua pequena cozinha, “ Não é que eu tenha mania de bisbilhotar o interior dos apartamentos dos moradores não moça”. O jovem sem nome que estava nu, tinha no rosto as marcas do ocorrido e no peito uma enorme mancha vermelha, resultado do sangue que saiu da sua cavidade bucal e fez um tortuoso e agonizante percurso; escorreu pelo seu corpo por algum tempo, encontrou seu peito, seus pêlos, seu sexo, seus membros inferiores. Depois do passeio o sangue secou na sua pele, deixando-a com duas cores. Próximo a sua mão direita havia um revolver calibre 38.
Os bombeiros foram chamados; a vizinha do apartamento do andar de baixo começou a desmaiar; outras três a berrar; a mãe, agora viúva de um filho, começou a anunciar que também ia morrer. Ah, não posso esquecer da sindica, esta, coitada, fez de tudo para que a notícia não se espalhasse, mas foi em vão. Em pouco tempo todos os moradores desocupados naquela manhã foram auxiliar os bombeiros – o jovem sem nome parece ser muito querido pelos vizinhos, afinal, todos se mostraram tããããão prestativos, preocupados em saber como, onde, quando, por que, e mais afins sobre a sua triste morte; embora ninguém no prédio soubesse o seu nome.
O jovem sem nome não deixou nenhum bilhete, e por enquanto não mandou nenhuma mensagem do além. Sabe-se de fonte confidencial que na sua mão esquerda se encontrava um passe amassado de ônibus. O pequeno pedaço de papel foi encontrado durante a autopsia e possuía a seguinte frase: “O amor é tomar posse da vida alheia e torná-la suja, triste, nua”. De acordo com familiares a letra não era do jovem sem nome; há quem diga que é letra de mulher. Eu não sei.
O fato é que o jovem sem nome a essa hora já passou pelas cerimônias de empalhamento cabíveis – “descanse em paz”, foi dito em coro. Amém.
Cinco dias atrás:
O vento é gelado e a tarde mais uma vez se fez triste. Não é o céu nublado, os rostos pálidos ou os olhares cálidos de malicia que tornam os dias assim. É o vazio. Os sorrisos estão cada vez mais amarelos; os “bom dia” soam falsos, sussurrados quase que por obrigação; o gozo é consentido, mas não sentido; e, o pior, a poesia perdeu a essência, virou fumaça.
Agora “seu peito dói, e o sol, o sol começa a te envelhecer”, como diz a canção doída de um amigo. Cômico, mas seu rosto de seda carrega dor e a ausência de brilho nos olhos; traços do peso de uma idade que ainda não tem.
Enquanto espera o ônibus das 18 horas ela se pergunta o porquê disso tudo. Olhando a grama ela consegue ver a seguinte cena: gira a chave, abre a porta de casa e diz “olá, cheguei”. Essa hora do dia será deprimente. Não será o fato de chegar em casa que a matará aos poucos – pois sabe que vai adorar a sua casinha amarela com cortinas de onçinha nas janelas. A dor virá quando ela ouvir como resposta o “miaaau” do gato feio e preto que achará na rua e levará para casa, pois, “um bichinho contrai a solidão”, dizem.
E dando continuidade a sua sessão de quiromancia para se distrair enquanto o ônibus não chega, ela se pega no futuro diante de um espelho embaçado. Alguém passou horas em baixo do chuveiro chorando, o que fez com que o vapor tomasse conta do lugar que se perdeu numa neblina. Ela está lá, de olhos fechados se negando enxergar as rugas e a flacidez dos seus seios. E suas noites serão assim, alfajores, gato preto feio, filmes preto e branco”.
“O que é o amor?” pensa consigo. Se distrai um pouco. De repente a resposta vem e ela lê de olhos fechados, “O amor é tomar posse da vida alheia e torná-la suja, triste, nua”. Repete a frase três vezes e resolve anotá-la, pois sua memória é fraca, digna da velha que se tornou. Sem papel, sem gravador – sempre foi uma péssima jornalista. Então resolve anotar a resposta no único papel que possui na carteira: um passe de ônibus – não, ela não tinha dinheiro, aliás nunca tem.
Um ponto azul aparece e fica maior na medida em que se aproxima. O ônibus chega, ela entra. Nesse instante cinco pessoas se amontoam querendo passar juntas numa catraca chinfrim. No meio de sexos e mãos alheias, com asco ela esqueceu da dor, esqueceu do amor e esqueceu do passe. Deu o escrito para o cobrador.
O cobrador, rapaz com idade entre 20 e 24 anos comete suicídio naquela noite. Branco, pesando aproximadamente 84 quilos, com 1, 78 metros de altura, dizem que até que era bonito.
Naquele instante em que a moça passou pela catraca, ele sentiu seu perfume adocicado e sem saber por que olhou o passe amassado vindo dela. Percebeu nele um torto garrancho que dizia, “O amor é tomar posse da vida alheia e torná-la suja, triste, nua”.
No final do expediente enfiou o passe da moça no bolso direito e foi embora a pé, como de costume. Antes parou num bar, encontrou uns amigos. Todos com suas namoradas. A noite cai e suas mãos estão frias. Seguiu seu rumo. Chegou em casa, preparou o jantar, lavou a louca, arrumou a cama, assistiu o jornal, tirou a roupa e se matou.
Antes disso colocou um cd do Nick Drake. Pink, pink, pink, pink, pink moon”, o dono da voz suave que invadiu o lugar também morreu de/por amor e o jovem sem nome sabia disso.
Depois de muito pensar ele fez o que tantos já fizeram. Abriu a boca, apertou as pálpebras e o gatilho; quanto as pálpebras, estas ele não mais abriu. Ficou estirado no chão frio da cozinha do seu apartamentinho por cinco dias, até que o velho zelador o encontrou. Mas agora o jovem sem nome está feliz, pois está sozinho, está puro. Tamanha felicidade é porque ele partiu para uma vida sem dor.
Hoje:
Dessa vez enquanto espera o ônibus azul marinho ela não faz pergunta alguma. Concentrada, lê a seguinte frase de Milan Kundera “são precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras de nossa existência”.
E fazendo jus a lei do eterno retorno que tem em mãos, o ciclo vicioso de todo dia se repete: o ônibus chega, ela sobe, as pessoas se esfregam e ela chega na catraca. Hoje notou que o cobrador não é o mesmo. Teve essa impressão ontem, ou acha que teve, enfim.
Catraca vencida, ela senta no banco de todos os dias, o segundo do lado direito de apenas um lugar – tática para evitar que pessoas sentem do seu lado. Sem saber por que ela decidiu que apenas hoje deixará de fazer perguntas. Eu farei como ela, deixarei de tentar descobrir o que levou o jovem sem nome a dar cabo da própria vida. “Uma pergunta sem resposta é um obstáculo que não pode ser transposto”. Por isso, eu se fosse você faria o mesmo: não queira saber o que é o amor; tampouco se preocupe com pessoas sem nome que amam e morrem por isso. Afinal, tudo irá desaparecer amanhã.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

↕ Amanhã é 26

Eu estou bem. A poça de sangue que cobre os seus pés, formada pelo sangue que dele escorre, não faz jus a tais palavras. Os murmúrios aumentam e a claridade o assusta. A cada minuto o seu “Eu estou bem” soa mais fraco. Ela, inerte, não entende direito o que acontece. Entrelaça as mãozinhas entre o peito, fecha os olhos e reza. Não sabe direito para quem, mas reza, porque um dia ele a ensinou a rezar. Ele a observa, “Como pode ser tão linda, a minha menina”. No mesmo compasso em que o pensamento nele vem, ela abre os olhos e seus olhares se cruzam; nesse instante ele cai. A claridade que há pouco o assustava virou escuridão. O sangue aumenta e cobre o chão do lugar como se fosse um lindo tapete carmim. Enquanto o levam para o hospital, ofegante ele balbucia, “Não me deixem morrer, eu preciso cuidar delas”. Então ela aperta sua mão e olha pela janela do carro; as ruas estão enfeitadas e as pessoas lá fora sorriem, é natal.