sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

↕ Uma frase mal dita. Maldita frase!

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Ontem:

Deu no jornal... Rapaz com idade entre 20 e 24 anos comete suicídio. Branco, pesando aproximadamente 84 quilos, com 1, 78 metros de altura, mais um jovem sem nome foi levado na manhã de ontem para o IML (Instituto Médico Legal) da cidade, onde passou por diversos exames. O jovem sem nome da vez foi encontrado morto pelo zelador do prédio em que morava; na ocasião ele estava nu e tinha um tiro na boca. A data da morte ainda está indefinida.
O velho zelador conta que enquanto se equilibrava no parapeito do edifício para realizar sua atividade trimestral, que é limpar as vidraças dos apartamentos, se deparou com o jovem sem nome deitado no chão da sua pequena cozinha, “ Não é que eu tenha mania de bisbilhotar o interior dos apartamentos dos moradores não moça”. O jovem sem nome que estava nu, tinha no rosto as marcas do ocorrido e no peito uma enorme mancha vermelha, resultado do sangue que saiu da sua cavidade bucal e fez um tortuoso e agonizante percurso; escorreu pelo seu corpo por algum tempo, encontrou seu peito, seus pêlos, seu sexo, seus membros inferiores. Depois do passeio o sangue secou na sua pele, deixando-a com duas cores. Próximo a sua mão direita havia um revolver calibre 38.
Os bombeiros foram chamados; a vizinha do apartamento do andar de baixo começou a desmaiar; outras três a berrar; a mãe, agora viúva de um filho, começou a anunciar que também ia morrer. Ah, não posso esquecer da sindica, esta, coitada, fez de tudo para que a notícia não se espalhasse, mas foi em vão. Em pouco tempo todos os moradores desocupados naquela manhã foram auxiliar os bombeiros – o jovem sem nome parece ser muito querido pelos vizinhos, afinal, todos se mostraram tããããão prestativos, preocupados em saber como, onde, quando, por que, e mais afins sobre a sua triste morte; embora ninguém no prédio soubesse o seu nome.
O jovem sem nome não deixou nenhum bilhete, e por enquanto não mandou nenhuma mensagem do além. Sabe-se de fonte confidencial que na sua mão esquerda se encontrava um passe amassado de ônibus. O pequeno pedaço de papel foi encontrado durante a autopsia e possuía a seguinte frase: “O amor é tomar posse da vida alheia e torná-la suja, triste, nua”. De acordo com familiares a letra não era do jovem sem nome; há quem diga que é letra de mulher. Eu não sei.
O fato é que o jovem sem nome a essa hora já passou pelas cerimônias de empalhamento cabíveis – “descanse em paz”, foi dito em coro. Amém.
Cinco dias atrás:
O vento é gelado e a tarde mais uma vez se fez triste. Não é o céu nublado, os rostos pálidos ou os olhares cálidos de malicia que tornam os dias assim. É o vazio. Os sorrisos estão cada vez mais amarelos; os “bom dia” soam falsos, sussurrados quase que por obrigação; o gozo é consentido, mas não sentido; e, o pior, a poesia perdeu a essência, virou fumaça.
Agora “seu peito dói, e o sol, o sol começa a te envelhecer”, como diz a canção doída de um amigo. Cômico, mas seu rosto de seda carrega dor e a ausência de brilho nos olhos; traços do peso de uma idade que ainda não tem.
Enquanto espera o ônibus das 18 horas ela se pergunta o porquê disso tudo. Olhando a grama ela consegue ver a seguinte cena: gira a chave, abre a porta de casa e diz “olá, cheguei”. Essa hora do dia será deprimente. Não será o fato de chegar em casa que a matará aos poucos – pois sabe que vai adorar a sua casinha amarela com cortinas de onçinha nas janelas. A dor virá quando ela ouvir como resposta o “miaaau” do gato feio e preto que achará na rua e levará para casa, pois, “um bichinho contrai a solidão”, dizem.
E dando continuidade a sua sessão de quiromancia para se distrair enquanto o ônibus não chega, ela se pega no futuro diante de um espelho embaçado. Alguém passou horas em baixo do chuveiro chorando, o que fez com que o vapor tomasse conta do lugar que se perdeu numa neblina. Ela está lá, de olhos fechados se negando enxergar as rugas e a flacidez dos seus seios. E suas noites serão assim, alfajores, gato preto feio, filmes preto e branco”.
“O que é o amor?” pensa consigo. Se distrai um pouco. De repente a resposta vem e ela lê de olhos fechados, “O amor é tomar posse da vida alheia e torná-la suja, triste, nua”. Repete a frase três vezes e resolve anotá-la, pois sua memória é fraca, digna da velha que se tornou. Sem papel, sem gravador – sempre foi uma péssima jornalista. Então resolve anotar a resposta no único papel que possui na carteira: um passe de ônibus – não, ela não tinha dinheiro, aliás nunca tem.
Um ponto azul aparece e fica maior na medida em que se aproxima. O ônibus chega, ela entra. Nesse instante cinco pessoas se amontoam querendo passar juntas numa catraca chinfrim. No meio de sexos e mãos alheias, com asco ela esqueceu da dor, esqueceu do amor e esqueceu do passe. Deu o escrito para o cobrador.
O cobrador, rapaz com idade entre 20 e 24 anos comete suicídio naquela noite. Branco, pesando aproximadamente 84 quilos, com 1, 78 metros de altura, dizem que até que era bonito.
Naquele instante em que a moça passou pela catraca, ele sentiu seu perfume adocicado e sem saber por que olhou o passe amassado vindo dela. Percebeu nele um torto garrancho que dizia, “O amor é tomar posse da vida alheia e torná-la suja, triste, nua”.
No final do expediente enfiou o passe da moça no bolso direito e foi embora a pé, como de costume. Antes parou num bar, encontrou uns amigos. Todos com suas namoradas. A noite cai e suas mãos estão frias. Seguiu seu rumo. Chegou em casa, preparou o jantar, lavou a louca, arrumou a cama, assistiu o jornal, tirou a roupa e se matou.
Antes disso colocou um cd do Nick Drake. Pink, pink, pink, pink, pink moon”, o dono da voz suave que invadiu o lugar também morreu de/por amor e o jovem sem nome sabia disso.
Depois de muito pensar ele fez o que tantos já fizeram. Abriu a boca, apertou as pálpebras e o gatilho; quanto as pálpebras, estas ele não mais abriu. Ficou estirado no chão frio da cozinha do seu apartamentinho por cinco dias, até que o velho zelador o encontrou. Mas agora o jovem sem nome está feliz, pois está sozinho, está puro. Tamanha felicidade é porque ele partiu para uma vida sem dor.
Hoje:
Dessa vez enquanto espera o ônibus azul marinho ela não faz pergunta alguma. Concentrada, lê a seguinte frase de Milan Kundera “são precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras de nossa existência”.
E fazendo jus a lei do eterno retorno que tem em mãos, o ciclo vicioso de todo dia se repete: o ônibus chega, ela sobe, as pessoas se esfregam e ela chega na catraca. Hoje notou que o cobrador não é o mesmo. Teve essa impressão ontem, ou acha que teve, enfim.
Catraca vencida, ela senta no banco de todos os dias, o segundo do lado direito de apenas um lugar – tática para evitar que pessoas sentem do seu lado. Sem saber por que ela decidiu que apenas hoje deixará de fazer perguntas. Eu farei como ela, deixarei de tentar descobrir o que levou o jovem sem nome a dar cabo da própria vida. “Uma pergunta sem resposta é um obstáculo que não pode ser transposto”. Por isso, eu se fosse você faria o mesmo: não queira saber o que é o amor; tampouco se preocupe com pessoas sem nome que amam e morrem por isso. Afinal, tudo irá desaparecer amanhã.

7 comentários:

Júlia Manacorda disse...

Olá, Clarice.
Ainda estou assustada.

Vani disse...

Adorei!
Daí pras crônicas de que me falou é um pulinho.
Vou te linkar no meu blog (e atualizá-lo imediatamente...rs)

Rafa disse...

Muito interessantes..todos detalhes..é fascinante!

ta ai eu blog..visita lá:

http://publicacaoderafaelaalves.blogspot.com/

Faguinho disse...

Bela narrativa, adoro esses textos que se perdem (ou se acham?) no tempo... só o final que achei que ficou com um tom egoísta.

giancarlo rufatto disse...

como gente simples se impressiona facil. como eu disse, o que voce escreveu não é nenhuma "a terra é redonda".

Jozieli disse...

Concordo Jão.

Eloá Menegocos disse...

Sinto-me lisonjeada, muito obrigada mesmo pelos seus elogios e por estar acompanhando o meu blog.
Seu blog é ótimo, depois eu passo com mais calma.
:*