Ao produzir o documentário Janela da Alma (2001), os cineastas João Jardim e Walter Carvalho retrataram em película várias visões de um mesmo mundo. Mas, sobretudo, a produção mostra a “superação” como premissa. Em trabalhos anteriores, para a TV ou para o cinema, ambos lançaram a garra de seus personagens diante dos nossos olhos – como a minissérie Agosto, produzida por João Carvalho e o longa-metragem Central do Brasil, do cineasta Walter Carvalho, que também foi responsável por filmes biográficos de figuras como Glauber Rocha e Cazuza. Em Janela da Alma, a palavra superação aparece intensa nos 19 depoimentos que compõem a produção. Durante uma hora e treze minutos, conhecemos histórias e passeamos pelo cotidiano de pessoas de diferentes nacionalidades e profissões, que têm em comum a deficiência visual – compartilhada em diferentes níveis.
Nos primeiros minutos do filme, presenciamos José Saramago norteando o que veremos a seguir. O escritor português defende que temos a visão limitada, independente de termos ou não um problema de visão, mas a ausência de clareza ao vermos o mundo é inerente a todo ser humano. “E para tornar isso claro, eu digo que se o Romeu, da história, tivesse os olhos de um falcão, provavelmente não se apaixonaria por Julieta. Porque os olhos dele veriam uma pele que não seria agradável de ver. Porque a qualidade visual do falcão, cujos olhos Romeu teria, não mostraria a pele humana tal como nós a vemos”, exemplifica o autor de “Ensaio sobre a cegueira”, que marcou a literatura mundial enfrentando as limitações de sua avançada miopia.
Mas a superficialidade ao enxergar o mundo daqueles que têm a visão naturalmente sã, embora nasça com o indivíduo, pode adaptar-se e romper limites ao se deparar com a cegueira total ou parcial. Nesses casos a visão, antes frívola, é aguçada e transmitida, de certa forma, a outros sentidos. Isso é enfatizado pelos depoimentos restantes, especialmente por Arnaldo Godoy, vereador de Belo Horizonte, que perdeu a visão na adolescência e desde então leva uma vida normal, relacionando-se e, inclusive, orientando-se bravamente no trânsito: “Eu faço um mapa na cabeça para me guiar. Fico ligado em outros referenciais, subidas, curvas, viradas, barulhos da rua”. A naturalidade com que Arnaldo conduz sua rotina é confirmada no depoimento de uma de suas filhas.
A deficiência visual pode causar uma “lesão interior” e, principalmente, resultar um trauma capaz de perseguir alguém feito sombra durante anos. Ao mesmo tempo em que traz À tona essa cruel realidade, a cineasta finlandesa Margot Remetem, revela que usou a arte como refúgio e passou a produzir animações para conscientizar as pessoas sobre os danos do preconceito.
Janela da Alma é um filme que sensibiliza e surpreende, como quando o fotógrafo esloveno Elgin Bancar mostra que a cegueira não anula a capacidade de fotografar. “Trata-se, então, de uma fotografia do invisível. Às vezes, percebo por mim mesmo, ou escuto e oriento a máquina em direção à voz”, conta o fotógrafo, que se intitula como “Narciso, sem o espelho”.
Concluindo, a principal reflexão do documentário é oferecida pelo músico brasileiro Hermeto Pascoal. Quando perguntado se já sentiu falta de ter uma visão normal, Hermeto reforçou o ensinamento presente do decorrer do documentário, alegando que “a visão dos olhos atrapalha a visão interior. Tem tanta coisa ruim que atrapalha a visão certa”. Dessa forma, Janela da Alma nos ensina que a “visão interior” é o que alimenta a superação, vence limitações oriundas da cegueira e, sobretudo, é capaz de guiar até mesmo olhos que permanecem fechados por opção.
Assista o documentário na íntegra aqui.