domingo, 18 de outubro de 2009

Desculpe, sou miope

Fingir candura é comum a cada passo da vida. Mas ser cândida sem querer ostentação é hipocrisia – tal proeza é digna somente de Cândido e seu otimismo chulo. É preciso saber servir a solidão com doses de sarcasmo e frieza, para assim enganar a morte de cada dia. E dar migalhas de ironia àqueles que têm gula e que vivem sob uma cegueira crônica – sustentados por uma miopia moral.

sábado, 10 de outubro de 2009

João de Paula, o registro da vida com imagem e poesia há 50 anos

Quando a fotografia alimenta a alma
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“A inspiração gira por aí. De repente ela passa perto de você como se fosse uma borboleta: se você pegar pegou, senão ela vai embora”. A frase é do fotógrafo e poeta João Maria Alves de Paula, artista que sempre buscou inspiração na natureza e andou com a câmera fotográfica pendurada pela alça no pescoço, registrando momentos únicos, alegrias e tristezas, por mais de 50 anos.
João de Paula nasceu em 13 de julho de 1935, em Lagoa Vermelha, no interior do Rio Grande do Sul. Em 1954, o jovem com então 19 anos, descobriu a fotografia no exército e lá mesmo começou a tirar e a vender as primeiras imagens capturadas por uma objetiva. Ao sair do quartel, em 1955, João fez um curso por correspondência e aprendeu suas primeiras técnicas fotográficas. Mas aprender a fotografar de forma quase autodidata gerou alguns episódios curiosos: “fotografei um filme inteiro, abri a máquina, tirei o filme e olhei contra a luz para ver como as fotografias haviam ficado... imagine! Claro, queimei o filme inteiro”, risos.
Chegada em Pato Branco
Os livros pelas estantes de sua casa e a máquina de escrever empoeirada dividem espaço com as centenas de fotografias que compõem um cenário nostálgico. Ali, João de Paula digita seus poemas e através de suas fotografias relembra a sua e a história de Pato Branco. Tendo como companheira uma memória que não falha, João lembra com exatidão o dia em que chegou na cidade e as dificuldades dignas de todo início de vida nova: “ cheguei aqui no dia 15 de fevereiro de 1965, e me instalei muito mal. Achava que ao chegar aqui eu já ganharia dinheiro. Que ganhar dinheiro coisa nenhuma! Foi passando o tempo e tive que vender até minha máquina para poder sobreviver”, recorda.
A ajuda veio literalmente do céu! Foi a nevasca que atingiu a cidade de Pato Branco em 1965 a responsável pela ascensão profissional de João de Paula. Na época, ninguém na cidade sabia fotografar neve, inclusive ele. Mas ao ver pela janela o chão tomado pelo tapete branco, João correu para seus livros e encontrou o que precisava: “Li que para fotografar neve o obturador deveria estar regulado na velocidade 250 e o diafragma na abertura 11. Após regular a minha máquina, regulei outra, a de um Frei que era muito meu amigo. Ele ficou desconfiado porque o diafragma estava muito fechado, não entendia que embora o céu estivesse escuro, a neve refletia a luz, por isso, ao deixar o diafragma aberto as fotografias estouravam”, explica. “Eu vendi tanta fotografia naquele dia que sai do anonimato. Até então eu era o João, o João – Ninguém. Depois daquele momento eu fiquei conhecido, ai não me faltou mais trabalho, até agora que resolvi parar de fotografar”.
O cotidiano pato-branquense em cada clique
Com a objetiva voltada sempre para os detalhes, João de Paula conseguiu registrar fatos curiosos e históricos de Pato Branco, pois como fotógrafo vivenciou várias faces da profissão, atuando do foto-jornalismo até à fotografia artística.
Uma das fotos mais conhecidas de João de Paula é aquela que registra o momento exato em que um raio atingiu a cruz da torre da Igreja Matriz São Pedro Apóstolo. Toda tempestade que se aproximava, João, que na época morava nas proximidades da Igreja Matriz, colocava sua máquina no tripé e ficava na janela da cozinha esperando o raio. “Quando consegui a foto eu quase caí de costas no chão, foi um susto tremendo. Eu fiquei eufórico para ver o resultado na manhã seguinte, tanto que naquela noite quase não dormi. No outro dia, quando revelaram o filme, eu tive na mão uma fotografia sensacional”.
Para a professora e historiadora Néri França Fornari Bocchesi, a história de Pato Branco foi registrada graças às lentes de João de Paula. “O João é uma figura importante em Pato Branco, porque ele não é um fotografo comum, ele enxerga aquele pormenor que o outro não vê e isso o diferencia dos demais. E, como ele registrou o cotidiano de Pato Branco por 50 anos, consequentemente registrou a nossa história”, frisa Neri.
Quando cliques viram versos
Outra face artística de João de Paula é a poesia. O fotógrafo desenvolveu uma facilidade curiosa em associar poesia com fotografia, pois passou a criar poemas baseados nos cenários de suas fotografias. E foi justamente para o aniversário de 15 anos de Pato Branco que João fez seu primeiro poema para homenagear a cidade.
“Ele é uma pessoa de uma sensibilidade muito grande, porque além de fotografo ele é poeta. Esses são apenas algun, de uma série de dons que ele tem”, ressalta a professora Néri, que foi a responsável pelo ingresso de João na Academia Patobranquense de Letras.
Traços do tempo
“O que é a natureza da gente? O que o mundo e o que o tempo fazem com a gente?”, me pergunta João de Paula. A resposta não veio. Há cerca de quatro anos, João de Paula, aos 75 anos, resolveu se aposentar. Atualmente, vive com sua esposa, seus livros, suas fotografias e com as abelhas que começou a criar no quintal da casa longe do centro da cidade. “A gente fica velho, não suporta mais música alta, agitação, barulho de criança, correria. Então resolvi para Não tenho mais o mesmo pique de outros tempos, como quando eu passava a noite toda acordado em pé numa festa fotografando, por exemplo”, revela.
João, que não se rendeu à fotografia digital, trabalhou sempre com câmeras analógicas, passando, às vezes, horas para revelar uma foto. “Eu me sentia emocionado toda vez que a imagem começava a surgir na minha frente na hora da revelação”, lembra.
Além de diversas premiações nacionais, ele tem fotografias aceitas em exposições internacionais, em países como Chile, Costa Rica, Itália e República Tcheca. E, embora sua trajetória artística seja longa e composta por vários prêmios, João de Paula também já sofreu com a falta de reconhecimento, realidade digna de tantos outros artistas locais. Atualmente, suas exposições, tão raras, dificilmente chamam a atenção da população, que normalmente se volta a outros tipos de lazeres. “A cidade de Pato Branco até agora não valorizou a grande figura humana e a grande figura artística que é o João de Paula”, desabafa Neri.
E o que a fotografia pode representar para um homem que por 50 anos, registrou ângulos da vida real com imagem e poesia? “A fotografia me deu duas coisas: me alimentou o corpo e a alma, ou seja, foi tudo para mim!”. Quando o ponto dessa frase foi desenhado no papel, agradecimentos foram dados, o bloco e a caneta devidamente guardados. Ao me despedir, dei as costas à nostalgia e a um homem grisalho, parado no portão da sua casa, com lágrimas nos olhos.