No meu caso, os livros nunca vêm
à toa. Sempre condizem com algum aspecto que vivi - quase sempre abordam o que
vivo no momento em que os leio. Os que trazem alguma lição, volte e meia
regressam aos meus dias. Foi assim com "A insustentável leveza do
ser". O livro aborda diversas questões existenciais, não é difícil se
reconhecer no mundo de Milan Kundera, tampouco relembrar alguma passagem vivida
por Tomas e Tereza. Ter o lido durante a faculdade, justo quando o
fotojornalismo começava a me fascinar, foi ainda mais enriquecedor. Através de
Tereza, o livro retrata a representatividade do jornalismo e da fotografia em
momentos de conflito. O cenário é a Primavera de Praga, mas Kundera revisita o
início do fotojornalismo e nos lança à história, rememorando que os primeiros
registros do gênero ocorreram na cobertura da Guerra da Crimeia (1853-1856).
Mas essa passagem voltou a ser
atual: os olhos do mundo estão na Ucrânia, onde os conflitos prometem se intensificar
e a guerra anuncia revisitar as ruas da Crimeia. Ontem, enquanto folheava um jornal
catarinense, uma foto mostrava militares e civis dividindo o mesmo espaço – uma
mulher atravessava a rua com uma criança, talvez mãe e filho, enquanto meia dúzia
de militares bem armados preenchia a via. O título da matéria era “Rússia mostra
armas e dialoga”. A sensibilidade de uma foto pode sim dispensar o texto, é a
pura verdade. Dias atrás, outra imagem me chamou atenção: na Síria, pedestres desviavam
de corpos em uma calçada, na tentativa de seguir ou forçar a rotina – enquanto
no ar predominava o cheiro da guerra.
Há um mapa da Ucrânia na
biografia que Benjamin Moser escreveu sobre Clarice Lispector – desde que li esse
livro, a Ucrânia ficou mais próxima de mim. Hoje, imagino o que Clarice diria, ao rever
uma guerra semelhante a que fez sua família fugir do país no inverno de 1921,
buscando refúgio no Brasil. Diria, com o R pesado: “quando escrevi que viver
não é vivível, era sobre isso, menina: guerra, fome, covardia”.
Engraçado, Milan Kundera inicia "A
insustentável leveza do ser" com a seguinte indagação: "O eterno
retorno é uma ideia misteriosa e, com ela, Nietzsche pôs muitos filósofos em
dificuldade: pensar que um dia tudo foi vivido e que tal repetição ainda vai se
repetir indefinidamente! O que significa esse mito?".
Ouso responder: significa que a ignorância humana se renova, na medida que
permanece imutável. A guerra é o único feito onde podemos generalizar, sem medo
de cometer equívocos; a trivialidade dos motivos sempre serão os mesmos – as cicatrizes
na alma das vítimas, na alma do universo, também. É possível sentir tudo isso,
em uma única foto.
Minha admiração aos
correspondentes de guerra, que tornam o fotojornalismo humano, sensível e
visceral.