Na cozinha, acomodada na cadeira
que precisa de conserto, o segundo momento mais alegre do dia: anoitecer, com a
cabeça vazia de trabalho, banho tomado, minha única preocupação é comer um
pedaço de bolo de cenoura e tomar o meu chá. Já faz um tempo que peguei o
costume de ligar o rádio enquanto me concentro em não cometer nenhum ato de
gula extrema. Hoje, ouvi ao acaso uma daquelas mensagens de motivação que
antecedem a Voz do Brasil. Um homem imitando Cid Moreira leu um trecho bíblico
do livro de Mateus. O texto denota que basta uma fé do tamanho de um grão de
mostarda para alcançar o impossível. Bonito. Indiferente de crer ou não, de ser
cristão ou não, é inegável a beleza das histórias narradas na Bíblia. Nesse
caso, um lembrete sorrateiro de que não há nada mais triste do que a desesperança.
Mas evitá-la é tão difícil. “Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou
morreu”, aqui, na calmaria do fim do dia, Chico sussurra dentro da minha
cabeça. Em momentos assim, a canção martela, vira enxaqueca. Mas o leão do meu
eu, esse que tenho que matar todos os dias, está na distância entre os olhos
azuis do menino que entrevistei essa semana – tagarela e inquieto para dar sua
opinião – e seus pés embarrados, protegidos do chão por chinelos de dedo na
manhã mais fria do ano. Não havia nenhum vestígio de tristeza naqueles olhos.
Por quê? É o peso das meias que impedem as pessoas de sorrir? Lembro desse
menino, vejo outro, aquele que vi dar os primeiros passos; e hoje dá lição. Meu
irmão destinou parte do primeiro salário num jogo de cordas para o seu
violoncelo. Talvez ele desconheça, mas está numa realidade paralela da
juventude que pertence. Antes disso tudo – do Chico, do menino dos pés gelados,
das cordas para violoncelo, do banho, do chá, da Bíblia, do devaneio – quando
cheguei em casa do trabalho, um bolo de cenoura havia sido recém colocado no
forno. Em cima da mesa, a bacia com o restinho da massa me esperava – um ritual
que eu e minha mãe mantemos desde que eu era menina. Trinta e cinco minutos
depois, pronto! No primeiro pedaço a acidez do dia ficou doce. Há uma distância
feroz entre estar triste e pertencer à tristeza. Feroz porque entre uma
condição e outra, paira a desesperança. Não há nada mais penoso do que uma vida
sem esperança – sem fé em algo ou em si. Dias podem ser como a aquela canção,
uma vida inteira não. Então eis o primeiro momento mais alegre do meu dia: é
pela manhã, quando saio da cama, prendo o cabelo antes de ir pro banho e paro diante
da janela: abro um pedaço da cortina e olho o céu; encaro o tempo, descubro o
humor do amanhecer. Hoje, um tom avermelhado, um manto dourado nas bordas pelo
sol sonolento que despertava, me dava bom dia como quem diz: recomece.
terça-feira, 10 de junho de 2014
domingo, 8 de junho de 2014
Fragmento: Entre estar e pertencer
segunda-feira, 2 de junho de 2014
Sobre cartuns, Voltaire e o tempo
“Pega um cd pra mim no porta-luvas?”.
Puxei a portinha e lá dentro um laço roxo enfeitava, de um jeito
singelo, o que indicava ser um presente. Hesitei, olhei pra ele como
quem questiona: “É pra mim?”. Ele acenou que sim, era. Peguei, reconheci
um livro do Voltaire e um cd, coletânea de Vinicius e Toquinho. No dia
anterior, eu completara 20 anos. O presente de aniversário
estava no meio de um pedaço de papelão decorado com recortes de
cartuns, desses publicados em tirinhas de jornal. Não foi o presente,
foi o embrulho meio artesanal. Tudo cortado e colado minuciosamente. O
imaginei escolhendo as histórias, as recortando e colando uma a uma, até
se tornarem um mosaico. Quem era ele, alguém que mal me conhecia e já
demonstrava tanto carinho e entrega por mim? Quase cinco anos depois,
ainda o reconheço.
Assinar:
Postagens (Atom)