sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Um amanhã sem maresia






É sensacionalismo mostrar para o mundo a imagem de um menino de três anos morto na praia? Então há pudor na imagem, mas não na palavra? Sei. A pergunta aqui é outra: do que há de evoluído em uma sociedade que não permite que mães e filhos cheguem em terra firme? Nada. E assim, guerras vêm e vão, nos mostrando que não há porto seguro. Enquanto isso, permanecemos aqui, à margem da impotência. Soa mais como hipocrisia. Quantas vezes, no conforto do nosso egoísmo, nos perguntamos sobre a guerra que avança longe daqui e não nos atinge, pois, entre nós e Aylans, há um oceano que, involuntariamente, afoga sonhos e anjos. A imensidão da nossa ignorância cabe em muitos mares; só não é maior que a tristeza de fazer parte de uma humanidade voluntariamente desumana, que ainda faz vítimas inocentes, crianças que não escolheram nascer nesta ou naquela nação; mas nasceram e tão logo morreram. Então, lembro do “eterno retorno”, que nos diz que vivemos em uma eterna repetição. A história nos mostra que sim. Somos impotentes, grãos de areia diante da cegueira alertada por Saramago. Foi em vão, José. Aylan vai tirar o nosso sono, a nossa sensação falsa de conforto. Mas até quando? Amanhã é um novo dia e dane-se o outro. Afinal, meu umbigo, minha conta de luz, minha visão insossa de coisa alguma prevalecem. Seguimos assim, protegidos pela indiferença. Hoje, Aylan deveria ter uma noite confortável de sono, numa cama quentinha, antes de ter comido algo gostoso. Deveria ter crescido a ponto de não usar mais aqueles sapatos. Ou ter reconhecido a sua história na aventura vivida por Pi. Mas não pôde. Não haverá mais amanhã, nem maresia.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Um movimento em direção a Deus





Já faz um tempo que venho organizando minhas crônicas para o que, um dia, será um livro. Tarefa árdua, afinal, não é só colocar um texto aqui, outro ali; é mais complexo, semelhante a gravação de um cd, onde uma música tem que completar a outra, assim por diante. Buscar uma ordem em meio a desordem é difícil. Rever o que estava aquecido no aparente esquecimento machuca. Principalmente porque me deparo com diferentes versões de um mesmo eu que, por vezes, soa como um estranho. Me tornei impostora de mim mesma? A resposta não vem.

Eis, mais uma vez, a liberdade presente na mudança. Então, me dei conta de que em vários textos menciono a minha relação com Deus. Algo involuntário até aqui. Longe de tecer qualquer comparação com os autores que me acompanham desde menina, mas jamais esquecerei o relato intimista que Benjamin Moser teceu sobre Clarice Lispector em sua biografia, mostrando que a obra literária dela representa um “movimento em direção a Deus”.

O fato é que a rejeição por esse Deus predomina em “Perto do coração selvagem”, como neste trecho: “E era tão perfeito o momento que eu nada temia nem agradecia e não caí na ideia de Deus”1. Mais tarde, a repulsa se torna uma busca, que surge de um jeito diferente em “A maçã no escuro”: “Seria isso o que Deus pacientemente esperara que ele compreendesse? Era isso o que lhe prometera. Mas mesmo que Deus pudesse falar, nada lhe teria dito por que se dissesse não seria compreendido. E mesmo agora o homem não compreendia”2. Estamos crendo, Clarice?

Clarice precisou se tornar Martim para revisitar um Deus incompreendido. A introspecção dá lugar a alguém que, aparentemente, depois de tanto resistir, crê. Em “Água viva”, o monólogo por vezes surge como súplica direcionada a Deus: “O Deus tem que vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha”3. Vísceras.

Desconfio de pessoas que vangloriam o ateísmo – exceto José Saramago, que me conduz a muitos questionamentos, por isso o temo. Desconfio, mas não contesto, os respeito. Porém, tenho dúvidas. Os imagino na hora do “pega pra capar”, naquele momento em que o chão vira fumaça, ou quando nos damos conta de que as pessoas que amamos não são imortais. Aí o mais incrédulo dos homens fecha os olhos e chora baixinho, como uma criança que se esconde atrás da casa porque quebrou a vidraça do vizinho. Então, o homem incrédulo clama com força: me dê mais uma chance, por favor! Silêncio em meio a soluços.

Já vi de tudo um pouco. Até o mais extremista virar evangélico e compartilhar, insistentemente, a nova postura. Respeito, mas também desconfio. A relação com Deus, assim como uma relação entre um casal, deve ser, sobretudo, preservada. Afinal, o verdadeiro sentido das coisas vive em melhor harmonia na calmaria a dois. Eis o amor genuíno.

Clarice sabia disso e justificava, dizia que Deus era um segredo só dela. Tanto que até hoje tentamos desvendá-la, escorregando em interpretações sujeitas a falhas. Entretanto, Benjamin Moser sugere que ela encontrou o Deus que passou a vida tentando compreender. “Deus teve de abandonar Clarice Lispector para permitir que ela começasse a sua própria obra de criação” 4, disse Moser, justificando: “... era fácil para Clarice Lispector rejeitar Deus, ou, no mínimo, sentir-se rejeitada pelo Deus que se afastara de sua família e de seu povo” 5, referindo-se à fuga que Clarice e a família, imigrantes judeus, traçaram na Ucrânia, até desembarcarem no Brasil.

Escrevi certa vez que os desencontros com Deus se dão pela mania que temos em humanizá-lo. Então me dou conta de que aprendi isso com Clarice e que, sobretudo, julgar a forma com que as pessoas encaram a religião é algo essencialmente humano e cheira caos. Em nome disso há guerras intituladas santas, inocentes agonizando, crueldade justificada pela fé, etc. Isso porque, embora galguemos um estado democrático e uma sociedade amparada no livre arbítrio, somos inteiramente arbitrários ao nosso oposto.

“Um Deus dotado de livre arbítrio é menor que um Deus de uma só lei. Do mesmo modo por que tanto mais verdadeiro é um conceito quanto ele é um só e não precisa transformar-se diante de cada caso particular. A perfeição de Deus prova-se mais na impossibilidade do milagre do que na sua possibilidade. Fazer milagres, para um Deus humanizado das religiões, é ser injusto – milhares de pessoas precisam igualmente e ao mesmo tempo desse milagre – ou reconhecer um erro, corrigindo-o – o que, mais do que uma bondade ou 'prova de caráter', significa ter errado”6, esclarece Clarice – a conhecemos como romancista, jornalista, cronista, quando na verdade ela filosofava sobre a existência.

Pode parecer confuso e contraditório. O fato é que no vazio entre o abandono e o encontro é que aprendemos a reconhecer o estranho que sempre esteve conosco. Senti-lo. Geralmente é na dor, naquele momento em que somos fracos, sem máscaras, acuados num olhar minguado que clama por compaixão. Pena que seja assim.




Referências
1 Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Editora Nova Fronteira, 9ª Edição – 1980. p. 52.
2 Lispector, Clarice. A Maçã do Escuro. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999. p. 227
3 Lispector, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. p. 55.
4  MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 165.
5  MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 164.
6  Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Editora Nova Fronteira, 9ª Edição – 1980. p. 91.