Imagino Clarice dizendo “Que demora, Virginia”, com sua língua presa e seu R arrastado: “Que demorrra, Virrrrgínia”. Demorou para quê? Para cortar o cordão umbilical; soltar a mão da infância; perder o júbilo pela família; esquecer o lustre do velho casarão. Demorou demais. Passou a maior parte da vida temerosa. Até que, diante de uma esquina, ao se ver insustentavelmente leve e prestes a ser livre, distraiu-se e deixou-se atropelar. Agonizou na rua, perante estranhos; partiu sem saber que deixava um coração partido.
Com ela, Clarice quis mostrar que uns conseguem andar sozinhos, trilham sua estrada sem sentir dor. Outros são mais vagarosos. Virginia foi assim – a menina que passou a infância querendo sair da fazenda e, já moça, sentia-se infeliz por dividir um apartamento consigo mesma e por se ver deslocada no epicentro da agitação de uma cidade pulsante; aquela dos sonhos juvenis.
Mas Virginia, sem muito esforço, penetra em você. Assim como as outras personagens de Clarice, esta pecou por amar demais. Vicente, eis aqui o nome do homem em questão. Mas ela não é todo amor. Com e sem ele, Virgínia nos lança, maciamente, doses de inquietação e questionamentos. Torna o futuro um lugar incerto; que em cima de uma gangorra, pende entre o lado seguro e o leviano.
No entanto, o que de início veio macio, aos poucos se torna perturbador; pra quem lê e pra quem escreve. Acho que por isso Clarice tratou de assassiná-la. E pra quem não sabe, a alternativa “atropelamento” foi inaugurada por Virginia (Macabea morreria, também assim, somente em 1977). E assim morre Virginia, sem despedida, apenas inundada de esperança, projetando um futuro bom.
Difícil tentar desvendar Clarice e suas personagens. As mulheres de suas histórias se misturam a autora e a você, leitor, que sempre vai pensar que está lendo uma autobiografia – de Clarice e, porque não, sua. E então você lê e relê páginas e páginas absorto, condenando-se por se identificar com tamanha inquietação. Fascinante essa capacidade de Clarice, em nos fazer pulsar, em nos fazer estremecer e, principalmente, nos questionar. Em “O Lustre” ela dá os primeiros passos para o que viria a fazer ao longo de toda sua obra. E o fez com muita maestria.
Um comentário:
Oi mocinha. :) Há tempos não passo por aqui. Gostei do novo layout e até mesmo do que escreveu sobre si na descrição do perfil... não diria que vc é somente autodidata da literatura mas sim q vc É literatura tbm. Tudo q escreve é de altíssima qualidade. Sua gaveta tem valor!!! :D
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