sábado, 12 de novembro de 2016
Apresse a prece
Deus, não permita que eu esqueça de onde vim, quem eu sou e porque estou aqui. Não permita que eu esqueça dos dias difíceis, do choro abafado ou da mobília que estragou com a chuva. Nem das vezes em que eu persegui meus sonhos enquanto o mundo dormia. Ou das manhãs em que vi a aurora, não por contemplação, mas por sobrevivência. Tampouco das vezes que me vi perdida dentro do abismo criado por mim. Ou das vezes que temi diante do novo. Nunca, jamais, me deixe desistir por medo! Não permita que o conformismo me acomode ou deixe de me incomodar. Não deixe que eu adie o abraço apertado ou o "eu te amo" mais sincero. O mais importante: por favor, não tire de mim o olhar que mira o céu, o rosto que sente o vento, o peito que pesa por se emocionar diante da vida. Que eu nunca deixe de sentir compaixão. E se eu despertar pela manhã sem agradecer por mais um dia, me mande um alerta! Que o reflexo no espelho me lembre que eu sou inteiramente grão. E quando eu for brisa feita de pó, que os rastros no tempo digam que eu não esqueci de onde vim, de quem eu sou e do motivo que me fez estar aqui algum dia. E mesmo sem ser mais coisa alguma, que a minha consciência seja capaz de agradecer.
terça-feira, 21 de junho de 2016
Cinco minutos na timeline
A liquidez de Bauman me mostra uma mãe pintando o rosto com o sangue do filho em uma favela do Rio de Janeiro. Também me apresenta um massacre contra índios no Mato Grosso do Sul. Aí eu lembro que os índices de suicídio entre jovens indígenas são consideravelmente altos. Ninguém se comove, afinal, "eles não fazem parte da nossa sociedade". Assim como a mãe negra que vive na favela. Mais uma. E aquela mãe indígena que teve o filho assassinado em Santa Catarina enquanto o amamentava, alguém se lembra? É, mais uma.
Clamar por igualdade de direitos quando milhares vivem em condições tão desiguais, é o mesmo que lutar contra moinhos de vento. Igualdade de quê? A igualdade que eu julgo ideal não condiz com a realidade do outro. Enquanto isso, continuamos julgando o desconhecido sem considerar as reais condições que ele dispõe. Clamar por uma igualdade isolada, é egoísmo.
Uma minoria emudece a maioria, sabia? A história entristece, mas cabe bem para você que se diz contra cotas, contra o feminismo, que agride homossexuais, que julga o governo por oferecer subsídios. Enfim, um pouco mais de leitura cairia bem para você que se diz "senhor da meritocracia". Apesar de você, como diz meu amigo Chico, eu ainda acredito que esse ciclo de cruéis repetições um dia será finito, que Parmênides estava errado e que a lei do eterno retorno tem um limite. O leve é positivo, o pesado é negativo. Precisamos dos dois para viver em harmonia. Ocorre que, historicamente, o segundo tende a prevalecer.
Hoje, por exemplo, não há leveza. Nesses últimos cinco minutos, eu também vi um jovem se jogando na Garganta do Diabo, deixando para trás apenas uma mochila e um bilhete para o pai. Alguém filmou, o vídeo viralizou. Muitos suicídios ocorrem em lugares assim, isso não é recente. A diferença é que, hoje, a morte alheia virou atração. É, somos atrações de um circo de horrores. Milhares têm acesso, ficam sabendo, mas quem realmente se comove?
A memória é efêmera se não interfere no meu comodismo. O que a torna efêmera? A indiferença; não com o hoje, mas diante da história. Apenas os que se permitem a reconhecer os traços do passado no presente é que se comovem com a ausência de liberdade e injustiças que, sim, assolam milhares e milhares todos os dias.
O que têm em comum o jovem suicida e a mãe que me fez começar a escrever a primeira linha? Ambos são vítimas de uma desigualdade histórica, que assassina filhos, que lança esperanças para o vazio.
Em menos de 5 minutos, eu senti a tristeza de uma mãe, a injustiça de um massacre e a desesperança de um jovem. Hoje, vou dormir com esses desconhecidos.
domingo, 17 de abril de 2016
Ironia, Cazuza, foi você dizer que só as mães são felizes
O que se espera de uma manhã de sábado? Perto das 08h, o sol já arde nos olhos, quase queima. Na esquina de casa, paramos o carro na faixa e aguardamos a travessia de uma família. Pai, mãe e filho, os três de mãos dadas. Nada incomum. Apenas o fato de que o menino, com não mais de seis anos (imagino), conduz os pais cegos para o outro lado da rua. Atento diante da missão que realiza com zelo, ele ainda faz um sinal de “positivo”, agradecendo por aguardarmos. Uma criança cheia de responsabilidades, que não se volta contra o mundo em virtude disso; pelo contrário, é gentil e se permite a agradecer.
Depois, na aula da pós – é sábado de pós –, o tema da aula é inclusão no ensino superior e o professor lança a dura realidade de sociedades excluídas, de mães indígenas que têm seus filhos degolados enquanto são amamentados. Todos assistimos na televisão e, naquele instante, lamentamos. Mas, e depois? Quem se preocupa com essa mãe que não tem mais um filho para guiar e, hoje, perambula sozinha rumo à loucura? Ironia, Cazuza, foi você dizer que só as mães são felizes.
Até quando mataremos a verdade que reside dentro de nós? Sabemos que ela existe; por ser uma inquilina indesejável, não a alimentamos, deixamos que mingue na nossa falsa ignorância. Por que não há compaixão diante da verdade? Talvez, falta alguém que nos guie até o outro lado da rua e nos faça encarar o sol que arde os olhos – e permitir que ele queime a indiferença existente em nossos corações.
quarta-feira, 16 de março de 2016
Declaração
Será que a gente ainda se ama ou se acostumou um com o outro? Não sei, tem dias que as horas são sufocadas por incertezas. O que eu sei é que quando eu ligo cedo pra desejar um bom dia, não é pra ser chato, é porque eu realmente quero que seja um bom dia. Isso, ao meu ver, é amor. Quando eu organizo a casa pra que você consiga estudar e te cubro em silêncio, pois faz frio lá fora, é amor. Quando eu preparo a bolsa de água quente sem você pedir, porque eu sei que você sente cólicas, voilá... amor. Quando saio pra rua e volto com um milk shake surpresa, amor. Ou quando eu fico ansioso porque sei que você tem algo importante pra fazer e meu dia parece correr leeeeeeeeeeeeento, pesado... aham, também é amor. Ou quando eu digo “vou dar meu jeito, não se preocupe”, sim, amor de novo. Principalmente naqueles dias em que eu esqueço de mim, mas ainda assim não esqueço de você. São nessas pequenas coisas que o que a gente sente se manifesta. No querer o bem do outro, sem querer nada em troca. Não, eu não me acostumei com você, nem nunca vou me acostumar, porque sei que preciso recomeçar todos os dias. Aliás, precisamos, né? Nem sempre será fácil. Mas, ainda assim, não almejo outro amanhã senão este presente aqui, do teu lado. E até nas horas sufocadas por incertezas, eu tenho certeza: é amor.
quarta-feira, 9 de março de 2016
1996
Lembra o dia em que o avião dos
Mamonas Assassinas caiu e muita gente não foi para a escola? Um pequeno grupo
de crianças passou pela rua cantando “minha Brasília Amarela, tá de portas
abertas”. Chovia e você disse que em dias assim, quando alguém que gostávamos falecia
e as gotas inundavam a terra, era porque “o céu estava em festa”. Não entendi
direito – a morte, o avião que tinha despencado, tampouco a tal festa. Rápido,
a dúvida deu lugar à lamúria manhosa, afinal, eu também queria ficar em casa.
Ou, quem sabe, ir lá fora cantarolar com os estranhos, tão alegres. Chovia e
era preciso estudar, sempre.
Sem motivo aparente, essa
lembrança me visitou dia desses. Ainda sinto o clima úmido daquela manhã vazia,
quase fria e chorosa em virtude da chuva insistente. Era março de 1996. E se, na
astúcia de criança, eu soubesse que em poucos meses você também nos deixaria?
Eu teria aproveitado cada instante ou admirado cada reprovação? Teria insistido
para que você me levasse ver o trem cortando a cidade, outras tantas e novas
incontáveis vezes? Não sei. Mas eu ainda sinto o gosto do bolo quente com leite
gelado, combinação que nunca ocasionou "dores de barriga" e afins.
Quando você partiu também chovia.
Era noite de Natal e lá fora, nas ruas, tanta gente sorria, cantava. Foi a
primeira vez em que percebi a incoerência da existência, onde a felicidade independe
da vida alheia. Vai ver seja por isso que, quando me permito sentir breves
espasmos de felicidade sincera, me condeno. Afinal, e os outros? Baita tolice!
Realmente, chovia naquela noite. A água escorreu sem rumo durante o dia seguinte, e no outro, e no outro. Deve
ter sido uma baita festa no céu. Como a que deve estar acontecendo agora, para
outros pais, mães, filhos. Talvez, o som macio dos pingos na janela seja uma
melodia terna, que quebra o silêncio e resgata lembranças – o jeito singelo de
quem partiu nos acariciar e trazer a saudade.
domingo, 14 de fevereiro de 2016
Olhares na chuva
Fiquei tanto tempo sentada aqui, inerte, tentando contar os
pingos de chuva. Esse vento com frescor de entardecer de verão é alento para dias
cada vez mais breves. Mas, por favor, não confunda fugaz com leveza. Nada
disso. Não há nada de singelo nos dias – apenas o amanhecer, que se anuncia em
um tom rosado, lindo, galgando esperança.
A verdade é que predomina no ar um peso que inibi sorrisos. É
um cansaço, compartilhado entre os olhares. Desconhecidos que se ignoram diante
da fragilidade mútua. Então, na tentativa torta de afiar as horas, apresso
ainda mais o passeio dos ponteiros. É um ritmo acelerado, mecânico, que
balbucia minha fuga. Não há amor, nem vacilo; apenas uma marcha perfeitamente
ensaiada.
Tudo em vão. Continuo aqui, inerte, indagando a água que cai
sem rumo, sem destino. E o meu? Confundo a lógica diante dos outros. Absorvo
suas tristezas e justifico tal façanha com uma única palavra: sensibilidade. Ou
é fraqueza? Antes eu fosse insensível, invisível ou, melhor, previsível.
Pesaria menos? Talvez.
Hoje, prevalece a sensação de que até esse pingo de chuva que
paira manso no meu dedo é mais feliz do que os corações cambaleantes, que
buscam a proteção fraudulenta de guarda-chuvas. Ah, se eu tivesse o humor de
Ariano Suassuna ou pudesse ser um dos seus personagens mentirosos. Talvez,
pesasse menos. Será?
Acontece que eu passo muito tempo aqui, inerte, tentando contar
os pingos, tentando encontrar um pouco de ternura. Nos olhares, na chuva. Em
mim.
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