Sentado, de braços cruzados sobre a mesa do canto, ele a espera. Exceto o primeiro, todos os seus encontros foram em mesas de cantos. Essa coisa meio clandestina, que faz parecer que o mundo se resume aos cantos escuros de bares, sempre a fascinou. Como ela gosta desse ambiente. Ar carregado, cheiro de vinho, jazz no fundo. No pequeno palco uma negra está cantando “Easy to Love”. Ela tem mania de fechar os olhos e se imaginar em algum bar qualquer ouvindo a Billie Holiday escarrar mágoas no seu colo, e o faz agora, porém a vê de olhos bem abertos.
Ao se deparar com aquela situação ela simplesmente fica sem ação. Perder a fala, perder a sensibilidade das mãos, ela sempre teve repulsa essa sensação de impotência. E agora a sente e se assusta. Está parada imóvel na porta do bar olhando para ele. É incrível como ainda possui a mesma mania de cruzar os braços, em que se iguala a um bicho acuado. E o reflexo da suave luz do palco está refletindo na lente do óculos torto dele. Mesmo longe ela repara isso, e recorda o reflexo de anos atrás.
A manhã é agradável, típica de fim de verão. Ela está atrasada, sempre se atrasa. Ao longe escuta alguém cantando embalado por uma gaita de boca. Ela segue a música e o avista. No meio da praça ele canta para 5 pessoas e 8 pombos. Uma mesa com uma toalha vermelha com alguns discos em cima, divide espaço com o cantor desconhecido. Uma placa com letras tortas diz: Cds de graça! Ela pára, pega um CD e o mira. Sem saber ao certo porque os olhos dele param de fitar o chão e encontram os dela.
Livros nas mãos, roupas ripongas, unhas mal feitas da cor da toalha em cima da mesa, cabelo estranho. Assim é ela no apogeu dos 18 anos. Nunca gostou de ser olhada. Nunca gostou de ser analisada. E enquanto seus dedos deslizam nas cordas do violão, ele a analisa. Sensação de nudez como se a sua alma estivesse visível. Ela vira as costas e vai embora sobre passos largos, até sumir do alcance daqueles olhos insanos que lhe desconcertaram.
Dias depois, ela está sentada num banco qualquer lendo "Lolita", quando sente a presença de alguém ocupando o espaço ao seu lado, até então vazio. Nunca gostou de conversar com estranhos, por isso prefere seus livros. Finge ler para mostrar indiferença, mas sem saber o porquê a maldita sensação de impotência sentou do seu lado no mesmo instante que o estranho. Arrisca olhá-lo. Jaqueta jeans, violão no colo. Foi a primeira vez que se viu refletida naquelas lentes tortas.
Enquanto os quatro estão ali – Ela, Ele, o livro e o violão – o relógio anda no sentido anti-horário e o tempo cessa. O estranho passou a ser alguém tão próximo, e segundos bastaram para que a sintonia mutua saísse de seus poros. Sempre acreditou em vidas passadas, déjà vus, e não há palavras cabíveis para narrar o que aconteceu com eles naquele instante.
No dia em que se conheceram ela sonhava em ser uma jornalista de renome e ele que sua música fosse compreendida. Os anos passaram e o trem não parou na estação que deveria. E ela tampouco desceu quando teve a vontade súbita de parar, mas seus sonhos se concretizaram, de uma maneira aparentemente torta como o óculos do amigo, mas sempre gostou de abismos e de andar no meio dos trilhos, então devido a companhia optou pelo inferno. O céu deixou para os finais de semana.
Já teve vontade de transar com o amigo, mas nunca se quer se beijaram. Deve ser pelo fato dela nunca ter aprendido a lidar com relacionamentos, por isso também não casou. Serei breve ao me referir ao seu trauma causado por um relacionamento: Certa vez resolveu tentar amar e conseguiu. Teve um noivo que morreu, e três meses depois da morte do amado ela descobriu que o mesmo a traia com a sua melhor amiga, o que de certo modo foi bom, pois nunca mais chorou pelo sacana. E como foi satisfatória a sensação de ver seus dedos marcados no rosto da safada. Porém, depois desse episódio seus lábios secaram e ela não conseguiu acreditar em mais ninguém.
A atração por ela era mais que evidente. Afinal, não se sentir atraído por aqueles olhos insinuantes era quase impossível. Mas nunca se atreveu a beijá-la. Também nunca se casou, mas sempre devorou mulheres. Muitas, muitas e muitas. Sua inspiração sempre teve cabelos longos e negros, mas ela era a sua exceção. Porém ele desceu na estação mais próxima antes mesmo das coisas entrarem nos trilhos, por isso deixou de viver muita coisa. Sua música foi ouvida, mas não se sabe se alguém a compreendeu.
Desde o dia em que sentou do seu lado sem pedir licença, ele se tornou seu alicerce de todas as horas. Riram e choraram juntos incontáveis vezes, mas os últimos sete anos em que não se viram foram realmente difíceis. Tantas foram as vezes que ela o viu e o sentiu, mas ela precisava o ver materializado, sentir seu cheiro e se deparar com aqueles lábios voluptuosos envolvidos pelo seu sorriso singelo escancarado, porém bonito, e se ver refletida novamente naquelas lentes.
O flash-back acaba e ela toma coragem para entrar de vez no bar. De todos os encontros regados a música e vinho que tiveram, este com certeza foi o mais esperado.
Ela empina a bunda, estufa o peito, e acreditem, mesmo com o passar dos anos ela continua linda e loira! Sem as roupas ripongas, aprendeu a pintar as unhas e por sorte estava impecável no momento em que foi para o encontro. Repara que olhares alheios lhe caem nos ombros conforme ela conduz seus passos em direção a mesa do canto.
Essa é a sua vez de não pedir licença, e sem falar nada, ela puxa a cadeira e senta. Instantes depois ele arrisca olhá-la:
Por que demorou?
Sempre fui covarde, suicídio anteciparia as coisas, você bem sabe que não é do meu feitio.
Nem do meu, mas passou a ser naquele instante. Você espera demais pelas coisas!
Haha! Foi tranqüilo, sabe que doeu menos que perder a virgindade?
Cínica. Vamos numerar as coisas: 1) você ainda é virgem!!! 2) as coisas nunca são do jeito que esperamos 3) a vida sempre nos surpreende.
Não, eu diria a morte!
Para mim não, ela não me surpreendeu, eu requisitei sua presença no momento que achei mais oportuno. Sempre tive o controle das situações.
Puta sacanagem a sua!
Não mesmo babe! Lhe deixei várias músicas e um romance, não seja mal criada.
Ah sim, obrigada!
Pensei que você não viesse. A garrafa está quase vazia.
É, demorei porque tive que decidir aonde queria ficar.
E por que optou por aqui? O clima? Hahaha, você nunca gostou do verão, por favor!
Não meu caro, “prefiro o inferno pela companhia”, lembra-se?
Já que é assim. Mas façamos um trato.
Qual?
Nada de cigarros!
Está bem! Mas agora encha meu copo, tenho muito pra lhe contar e depois ainda quero procurar a Janis.