quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Doutor, divago
quinta-feira, 15 de setembro de 2011
O gosto de setembro
terça-feira, 26 de julho de 2011
Quatro coisas e um adeus
terça-feira, 19 de julho de 2011
Brisa leve
segunda-feira, 13 de junho de 2011
Fios brancos e adeus
Difícil ter um começo, meio e fim sem correr o risco de ficar preso pelo pescoço em um deles. É, ficar ali, inerte, esperando a hora de seguir em frente. Duas semanas sem fumar, ainda é início ou já é metade? Sinto beirar o final. Meu dedo indicador da mão direita perdeu um pouco do tom amarelado e sujo, causado pelos filtros diários. A tosse aparece bem menos; e ainda assim quando surge, vem furtiva, quase sem som. Até me sinto sozinho.
Lembro de meu avô sentado à beira do fogão a lenha, fumando paiero, falando do seu tempo de pracinha na guerra e venerando Getúlio. Sinto não ter dividido um desses momentos com ele enquanto homem feito, sem ter joelhos de menino, nem olhos de curiosidade infinita. Entre uma pitada ou outra, sei que defenderia Che enquanto ele, pigarreando, se perderia em seu labirinto de memórias.
Tudo mentira, não conheci meu avô. Mas invento lembranças assim, para espantar o vazio.
A primeira vez que tentei largar o cigarro foi quando Alice ameaçou ir embora por causa do “cheiro forte de Carlton”. Por ela perdi o vício, a fome, o chão, o viço. Alice não gostava na mistura agridoce de bala de menta e tabaco. Foram meses dividindo comigo um apartamento de quarto e cozinha; às vezes me pergunto se não foram anos. Mas um dia Alice partiu, deixando no ar vazio o cheiro doce de lavanda barata - odor que não durou muito, pois na mesma hora rumei a mercearia, voltei segurando dois maços de cigarro barato.
Respiro pausadamente, enquanto trago um olhar caído. É de tristeza. Nessas últimas semanas ando me sentindo sozinho – sempre estive sozinho, mas agora sinto. Por isso me perco nessas histórias infundadas – imagens que surgem e ganham narração – sem saber se realmente aconteceram ou se as pintei na minha imaginação grisália, que ainda teima em pincelar vagas lembranças.
Sempre sutil. O cigarro era alento, uma boa companhia ao parar na janela para observar o orvalho em cima dos bancos da praça. A tosse inundava a casa de presença, sem transbordar o som vazio nem abafar o Roberto Carlos na vitrola.
Aqui, com as mãos vazias, admito que nunca achei que poderia mudar o mundo depois dos 30, quiçá depois dos 70. Por isso me conformei com a ideia de ir para o asilo, deixar esse apartamento antigo, a sacada de onde vi os prédios maiores e modernos nascerem, tomando conta da quadra e apagando o calor do verde.
Mas ainda tenho dois dias. O suficiente para descer rumo a mercearia, que há muitos anos deu lugar a um mercadão – quero sentir o gosto torpe do meu bom e velho amigo antes de partir. Aprendi que cigarros são bons companheiros em despedidas. Foi por isso que me viciei: cultivei e inventei despedidas, durante toda a vida.
quinta-feira, 19 de maio de 2011
Janela da Alma: a superação em película
Ao produzir o documentário Janela da Alma (2001), os cineastas João Jardim e Walter Carvalho retrataram em película várias visões de um mesmo mundo. Mas, sobretudo, a produção mostra a “superação” como premissa. Em trabalhos anteriores, para a TV ou para o cinema, ambos lançaram a garra de seus personagens diante dos nossos olhos – como a minissérie Agosto, produzida por João Carvalho e o longa-metragem Central do Brasil, do cineasta Walter Carvalho, que também foi responsável por filmes biográficos de figuras como Glauber Rocha e Cazuza. Em Janela da Alma, a palavra superação aparece intensa nos 19 depoimentos que compõem a produção. Durante uma hora e treze minutos, conhecemos histórias e passeamos pelo cotidiano de pessoas de diferentes nacionalidades e profissões, que têm em comum a deficiência visual – compartilhada em diferentes níveis.
Nos primeiros minutos do filme, presenciamos José Saramago norteando o que veremos a seguir. O escritor português defende que temos a visão limitada, independente de termos ou não um problema de visão, mas a ausência de clareza ao vermos o mundo é inerente a todo ser humano. “E para tornar isso claro, eu digo que se o Romeu, da história, tivesse os olhos de um falcão, provavelmente não se apaixonaria por Julieta. Porque os olhos dele veriam uma pele que não seria agradável de ver. Porque a qualidade visual do falcão, cujos olhos Romeu teria, não mostraria a pele humana tal como nós a vemos”, exemplifica o autor de “Ensaio sobre a cegueira”, que marcou a literatura mundial enfrentando as limitações de sua avançada miopia.
Mas a superficialidade ao enxergar o mundo daqueles que têm a visão naturalmente sã, embora nasça com o indivíduo, pode adaptar-se e romper limites ao se deparar com a cegueira total ou parcial. Nesses casos a visão, antes frívola, é aguçada e transmitida, de certa forma, a outros sentidos. Isso é enfatizado pelos depoimentos restantes, especialmente por Arnaldo Godoy, vereador de Belo Horizonte, que perdeu a visão na adolescência e desde então leva uma vida normal, relacionando-se e, inclusive, orientando-se bravamente no trânsito: “Eu faço um mapa na cabeça para me guiar. Fico ligado em outros referenciais, subidas, curvas, viradas, barulhos da rua”. A naturalidade com que Arnaldo conduz sua rotina é confirmada no depoimento de uma de suas filhas.
A deficiência visual pode causar uma “lesão interior” e, principalmente, resultar um trauma capaz de perseguir alguém feito sombra durante anos. Ao mesmo tempo em que traz À tona essa cruel realidade, a cineasta finlandesa Margot Remetem, revela que usou a arte como refúgio e passou a produzir animações para conscientizar as pessoas sobre os danos do preconceito.
Janela da Alma é um filme que sensibiliza e surpreende, como quando o fotógrafo esloveno Elgin Bancar mostra que a cegueira não anula a capacidade de fotografar. “Trata-se, então, de uma fotografia do invisível. Às vezes, percebo por mim mesmo, ou escuto e oriento a máquina em direção à voz”, conta o fotógrafo, que se intitula como “Narciso, sem o espelho”.
Concluindo, a principal reflexão do documentário é oferecida pelo músico brasileiro Hermeto Pascoal. Quando perguntado se já sentiu falta de ter uma visão normal, Hermeto reforçou o ensinamento presente do decorrer do documentário, alegando que “a visão dos olhos atrapalha a visão interior. Tem tanta coisa ruim que atrapalha a visão certa”. Dessa forma, Janela da Alma nos ensina que a “visão interior” é o que alimenta a superação, vence limitações oriundas da cegueira e, sobretudo, é capaz de guiar até mesmo olhos que permanecem fechados por opção.
Assista o documentário na íntegra aqui.
quinta-feira, 21 de abril de 2011
Tristessa: o chuviscar que perturba a calma
Tristessa é para Kerouac o mesmo que Cass é para Bukowski: a mulher mais linda da... Cidade do México, uma paixão incerta, nonsense e inacessível. Em Tristessa (1960), Jack Kerouac compartilhou memórias biográficas, escreveu um livro poético e ao mesmo tempo doloroso. Não que seus livros anteriores não teçam poesia, mas neste livro fininho, a poesia consegue vencer a dor que Jack, o protagonista-autor, sente por amar Tristessa sem poder tocá-la. Mas, como sempre, a poesia de Kerouac não é gratuita; ela aparece furtiva, escolhe a dedo os olhos e o espírito de quem a lê.
O livro fascina. Contudo, inicia numa narrativa arrastada que, repentinamente, torna-se febril e, no lugar da monotonia, dá lugar a uma bela história – pois bem, estamos falando de Kerouac, capaz de fazer poesia macia num livro extremamente pesado, desse jeito: “suave é o chuviscar que perturbou minha calma”.
Diferente de On The Road (1957) e Os Vagabundos Iluminados (1958) – em que Kerouac retrata histórias simples, com caronas e mantras – em Tristessa, Kerouac se autobiografa de forma cruel e, ao descrever o mundo de Tristessa, nos leva aos becos da Cidade do México, narrando a rotina sem norte de uma viciada e seus amigos, na saga contínua para conseguir dinheiro e droga.
Devemos muito a Esperanza, que deu vida e inspiração a personagem central deste livro – uma prostituta mexicana, dependente de morfina, amada por Jack pelo seu jeito simples e sua fé na vida: “Tristessa é uma viciada e lida com isso magra e despreocupada, enquanto uma americana seria melancólica”, descreve o autor.
Antes de dizer adeus a esse livro, difícil não associar mais uma vez Cass a Tristessa, Bukowski a Kerouac – não estou incluindo Bukowski à geração beat, mas é inegável a semelhança entre as duas personagens, em personalidade e beleza. Quero voltar à mesa de bar, quando Cass espeta o nariz com um grampo e ironiza perguntando se ainda está bonita; nesse instante, sentimos a mesma aflição e dúvida despertada no momento em que Tristessa cai e bate a cabeça com força no chão. Pois bem, ai descobrimos que também as amamos!
quarta-feira, 30 de março de 2011
Peixes e pássaros
O nascimento e o nome não virão na primeira linha. O ponto de partida deve ser uma lembrança; a primeira da infância, ainda nítida. Aos quatro anos temia a chuva. Achava que os pingos da chuva se transformavam em peixes quando caiam nas poças d’água – o pingo vinha do céu como uma pedra lançada, encontrava a água morna e, furtivamente, a deixava em pura agitação. Ainda hoje, essa lembrança desperta nos dias chuvosos, mas não temo, pelo contrário – ela emudece raios, pinta de azul o céu que do outro lado da janela insiste em trajar cinza. Essa lembrança quem me deu foi meu pai.
Pelo o que me consta, a vida começou no dia 19 de dezembro de 1989. No mesmo dia e mês, em 1915, nascia Edith Piaf, o pássaro francês. Não, eu não canto (sóbria), mas foi com mulheres como Edith que aprendi que a música – assim como a literatura – é capaz de eternizar histórias e servir, principalmente, como ferramenta de luta; seja em revoluções ou pela simples sobrevivência diária.
O tempo passou traçando datas, trazendo nomes, rostos, anos...
Folheando um livro, há alguns meses li a seguinte frase: “Você é muito medroso e com medo ninguém consegue escrever”. Mais uma vez Clarice Lispector veio até mim, desta vez me mostrando que com medo ninguém é capaz de viver. Por isso deixei o medo na primeira lembrança, nos jardins da infância.
sexta-feira, 25 de março de 2011
Carta a D: amor versus existencialismo
Em pouco mais de setenta páginas, conheci um homem e uma mulher, ambos na mesma história. André e Dorine, embora seguissem o existencialismo como corrente filosófica, não praticaram os mesmos preceitos dos amigos Sartre e Simone. E é assim, versando o amor e o existencialismo que André Gorz narra os anos que viveu ao lado de Dorine.
De antemão, o que torna este romance fascinante é o enredo: renomado filósofo e jornalista austríaco (radicado na França), tem o primeiro romance publicado postumamente, após suicidar-se com a esposa, Dorine, em 24 de setembro de 2007. Eis o especialista em Sartre, teórico social e político, líder em Maio de 68, autor de diversos livros na área de sociologia e filosofia, divagando abertamente sobre o amor; e este vem ácido, nem sempre macio.
Engana-se quem espera ler uma história fúnebre, sobre uma mulher que convalesce e recebe efusiva veneração. Gorz não destina uma admiração desmedida a esposa, pelo contrário, a justifica todo instante; e convence, pois ao último ponto final do livro todos se tornam fãs de Dorine. Enquanto eleva a esposa, o autor revela fraquezas, narra uma série de martírios por integrar o enlace matrimonial e, principalmente, por inferiorizar aquela que deu sentido a sua existência.
Outra surpresa. A tão mencionada doença de Dorine toma forma somente nas últimas páginas do livro, não é o foco central da história; que também aborda vários aspectos socialistas. Mas, sobretudo, Gorz buscou mostrar como um amor amadurece e é capaz de “renunciar para se concentrar no essencial”. Assim, o autor biografado não mediu esforços para prolongar a vida da esposa – expõe um amor raro, invejável.
Carta a D é a história de uma relação amorosa que ora parece surreal, ora se torna palpável; é preciso sensibilidade no instante que as palavras encontram os olhos e, sobretudo, chegam ao coração. É um romance de um casal, como tantos outros, que enfrentou dificuldades financeiras, emocionais, ideológicas e até driblou a morte para permanecer juntos. O suicídio não foi uma atitude egoísta de quem temia seguir o carro fúnebre da esposa. Os dois escolheram morrer esperançosos, certamente de mãos dadas, crentes que adiante haveria um novo amanhecer.
terça-feira, 15 de março de 2011
Quiçá
Às vezes ele passa rápido pela cidade. Me abraça forte, fala do meu perfume, pergunta como estou. Silencia – deixa que eu acaricie seu rosto, o beije macio nos lábios. Depois segue lacônico pela estrada, sempre com as mãos vazias, sem bagagem.
Quiçá pudesse levar consigo minha saudade.
Quiçá a estrada travessa o trouxesse todos os dias para mim.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
O lustre de Virgínia
Imagino Clarice dizendo “Que demora, Virginia”, com sua língua presa e seu R arrastado: “Que demorrra, Virrrrgínia”. Demorou para quê? Para cortar o cordão umbilical; soltar a mão da infância; perder o júbilo pela família; esquecer o lustre do velho casarão. Demorou demais. Passou a maior parte da vida temerosa. Até que, diante de uma esquina, ao se ver insustentavelmente leve e prestes a ser livre, distraiu-se e deixou-se atropelar. Agonizou na rua, perante estranhos; partiu sem saber que deixava um coração partido.
Com ela, Clarice quis mostrar que uns conseguem andar sozinhos, trilham sua estrada sem sentir dor. Outros são mais vagarosos. Virginia foi assim – a menina que passou a infância querendo sair da fazenda e, já moça, sentia-se infeliz por dividir um apartamento consigo mesma e por se ver deslocada no epicentro da agitação de uma cidade pulsante; aquela dos sonhos juvenis.
Mas Virginia, sem muito esforço, penetra em você. Assim como as outras personagens de Clarice, esta pecou por amar demais. Vicente, eis aqui o nome do homem em questão. Mas ela não é todo amor. Com e sem ele, Virgínia nos lança, maciamente, doses de inquietação e questionamentos. Torna o futuro um lugar incerto; que em cima de uma gangorra, pende entre o lado seguro e o leviano.
No entanto, o que de início veio macio, aos poucos se torna perturbador; pra quem lê e pra quem escreve. Acho que por isso Clarice tratou de assassiná-la. E pra quem não sabe, a alternativa “atropelamento” foi inaugurada por Virginia (Macabea morreria, também assim, somente em 1977). E assim morre Virginia, sem despedida, apenas inundada de esperança, projetando um futuro bom.
Difícil tentar desvendar Clarice e suas personagens. As mulheres de suas histórias se misturam a autora e a você, leitor, que sempre vai pensar que está lendo uma autobiografia – de Clarice e, porque não, sua. E então você lê e relê páginas e páginas absorto, condenando-se por se identificar com tamanha inquietação. Fascinante essa capacidade de Clarice, em nos fazer pulsar, em nos fazer estremecer e, principalmente, nos questionar. Em “O Lustre” ela dá os primeiros passos para o que viria a fazer ao longo de toda sua obra. E o fez com muita maestria.
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
Ausência do rouxinol
Os pássaros somem do céu conforme nos distanciamos da infância. Quando se é criança o céu parece ser muito mais movimentado por pios capazes de fazer despertar – alguns rouxinóis até morrem por amor, dizem.
A garoa veio furtiva, mas deixou no ar aquele cheiro gostoso de terra amançada pela chuva. Dia desses me deparei com alguém que não tem olfato. O que é pior, ser Grenouille ou não sentir odor algum? É certo que memória olfativa é inferior à visual, mas cheiro emite vibração, sensualidade, marca momentos e sentimentos que fazem o coração pulsar forte. Mas tem gente que evita. O que faz alguém evitar essas sensações? É a insistência em pensar.
Fugi delas como quem evita a consciência e suas verdades. Durante meses passei por inspirações nulas, indignas de uma frase no papel; sempre em branco, feito poeira de frustração que invade os olhos. Roberto jamais entenderia isso. Para ele basta que meu vestido esteja bom e o batom em boa tonalidade. Ainda aqui, nesse banco úmido, espero pelo homem que escolhi; encaro o silêncio dos pensamentos como a melhor rota de fuga.
Pelo céu, um pássaro voava maciamente. Mas Alicia não o viu.