quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Lembranças de um novembro


Tudo do que sei
Está guardado
Na quietude
De um olhar
Incoerente

A valsa que dancei
Num compasso colado
Fez beatitude
De um abraço
Tão terno

Era outono
E a esperança
Singela e lúcida
Envolvia a invasiva
Sensação de inverno

Ah, se o contorno
Da tua lembrança
Trouxesse muda
A certeza imprecisa
Do presente 


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Quando dizer adeus



Quando o fim de tarde endurece o sorriso, fazendo com que o coração marche em desânimo dentro do peito, eis o indício da despedida rotineira, que desabrocha aos domingos. Apesar do desalento, os passos vêm largos, com pressa para encontrar a melancolia. No fim, essa “melancolia” diante da despedida irrefutável é o único afago; como mostra Lars von Trier naquele filme em que iguala  a Terra a uma noz esmagada.

Mas, afinal, não há nada mais bucólico que o anoitecer de fim – e recomeço – de domingo; cuja despedida é trazida por uma brisa leve que sossega e perturba. “Termina para quem parte, recomeça para quem fica”, reflito. “Será?”. Contudo, em ambas as situações, não há fome, não há viço, tampouco há sono. Não há nada. Enquanto o adeus não vem, só há a incerteza comum diante de cada novo e revisitado passo.

Embora a consciência da despedida anunciada seja vivaz, desconhecer a data escolhida pelo adeus comum a todos é o que tortura os corações cambaleantes. “A morte, quando chegará? Para mim, para os outros...”, divago.  Ela não é como o domingo, de visita previsível, mas pode vir com ele – e esse “pode” às vezes vem com um sorriso malicioso, deixando algumas tragédias insuperáveis  de presente; como a morte de duzentos e tantos sonhos juvenis. Então, eis a segunda-feira, com a cara lavada, mostrando que a vida segue. “Para aonde?”, pergunto e, às vezes, esqueço.

Há em cada um de nós uma faísca da maledicência – bípede – em relação aos dias, aos anos. Também há a complacência – também bípede – que insiste em admirar a aréola do próprio umbigo. Enquanto eu, aqui, redescubro Virgínia, sonho com a Londres de 1910 e peço, enquanto você dorme do seu jeito singelo – respirando pesado, como quem sonha pela última vez. “Peço o quê? Para quem?”. Peço a Deus, para que me deixe mais um pouco; nos fins de tarde, no início de cada sorriso.

Mas eis a vida, tão breve.  


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Cores depois do Carnaval



Quarta-feira depois do Carnaval. A euforia alheia se despede, enquanto a cortina oscila como uma bandeira em alto mar. É um abrir e fechar calmo, guiado pelo vento fresco que sucede a chuva de verão. Enquanto se move, feito uma dançarina que exibe o gingado com o balanço da saia, a luz forte clareia o quarto que hora traja cinza, hora recebe um afago morno feito de resplendor.  Claridade vinda assim, furtiva, faz os olhos murcharem. Afinal, ninguém suporta tanta sinceridade. Chega doer. Mas de onde vem essa dor? É uma dor vestida de Colombina, receio.

Por pouco, o cinza da “quarta-feira de cinzas” foi soberano. Mas o branco foi mais destemido e invasivo, se dissipando e dando espaço ao azul escondido atrás das nuvens finas. Não há mais vestígio de chuva lá fora. Aqui dentro, no meu peito, uma sensação de sossego ganha força na medida em que as nuvens andam depressa, sem pausa para formar nenhum desenho.  Será que há mais alguém vendo isso? Bem possível, pois está nos livros, está nos filmes, que o céu é para todos. Ao menos para àqueles que, de vez em quando, se detêm na tentativa de decifrar o que é comum a todos. Como o céu, o sol, a lua, a dor, a esperança, o riso, a alegria. A morte.

Não há cinzas na minha quarta-feira de cinzas. E quanto ao Carnaval? Embora aparentemente seja regra a quem nasceu no ponto verde-amarelo deste lado do meridiano, às vezes é possível escolher o lado avesso. Ou aceitá-lo sem banalidades e sem ziriguidum-dum-dum. Será mesmo possível? Enquanto a resposta não vem, fica a certeza de que o Carnaval é para todos, mas a quarta-feira não.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Descomplicando o amor






Certa vez fotografei duas pombas-rolas namorando; uma roçava o bico miúdo na cabeça da outra, que com os olhos bem fechados imitava a expressão de alguém que ganha um doce carinho. É uma foto bem bonitinha, que me faz pensar que o amor não é esse nó impossível de desatar que as pessoas dizem por aí, tampouco é um ser indomável de sete cabeças – afinal, até uma pomba-rola sabe disso. Não, não é preciso ser irracional para conseguir conduzir uma relação avessa às convenções tortuosas e trágicas, dignas dos poemas desiludidos de Álvares de Azevedo.


Lamuriar e enaltecer o “desapego do amor jamais correspondido”, por mais demodê que seja, ainda é comum – à imaturidade amorosa. Aprender que a comédia romântica não acontece do lado de cá da tevê é fundamental para receber o amor do outro e, sobretudo, o amor próprio. Não fantasiar atitudes, nem tentar adivinhar pensamentos alheios, em todos os tempos verbais, são premissas básicas e importantes. Mas isso tudo vem com o tempo, garantem. Enquanto ele não vem, quem sofre com difamações é o “amour”.


Por essas e outras, sou totalmente parcial na defesa do amor. Oras, não pode haver essa propagação injuriosa dos feitos amorosos, tampouco a ideia de que ele não existe, pois é pura ilusão. Falo do sentimento, não do que as pessoas fazem com ou sem ele. A figura do sentimento usando armadura e lança na mão, que luta contra o mal, vence ou perde, é bem culpa de Shakespeare – quem vai contestá-lo? Eu, não – e, depois, das novelas. Resta se espelhar na leveza das pombas; afinal, somos tão soberanos que ainda não percebemos que quando o assunto é amar, vive mais quem expõe e complica menos.   


Enfim, o amor só se materializa quando deixamos de vê-lo como um poema épico ou conto de fadas. Garanto, o amor está mais para verso livre, como os de Quintana. Mas o saudosismo do amor platônico ainda é, e pelo jeito será para sempre, muito mais convidativo para a grande maioria das pessoas. Que pena.


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Mansfield Park: um olhar feminino sobre a cegueira moral


Quando a leitura é conduzida por Jane Austen, os cenários são ao mesmo tempo comuns e singulares.  Isso se dá pela proximidade entre os enredos dos seus livros, na temática, na época, na sociedade inglesa descrita com minuciosidade e maestria através da sutileza feminina presente no texto; tanto nas personagens quanto na autoria. Mas engana-se quem espera livros compostos por lamúrias de “mulherzinha”. Jane Austen consegue abordar muitas nuances da sociedade e do íntimo dos indivíduos de maneira crítica; e evidenciou essa capacidade em Mansfield Park, obra de 1814. 

Seguindo a corrente dos mais aclamados e conhecidos “Orgulho e preconceito” (1797), “Razão e sensibilidade” (1811) e “Persuasão” (1818), ao compor os habitantes da propriedade campestre denominada Mansfield Park, situada não muito distante de Londres, Jane Austen mostrou o íntimo de uma família inglesa burguesa. Contudo, em vez de atribuir um ou dois sentimentos como atenuantes da história, em Mansfield Park a autora consegue reunir todas as atitudes capazes de serem abrigadas no coração pulsante de jovens primos que, no auge da adolescência, suscitaram paixões e decepções num círculo familiar que se viu diante de impasses ideológicos, imprudências e escândalos.

O livro traz como personagem principal a tímida – e por vezes insossa – Fanny, que aos nove anos é levada para morar em Mansfield Park, propriedade dos tios Bertram; solidários a má sorte financeira da família da sobrinha. Em Mansfield Park, Fanny cresce ao lado dos quatro primos, do tio e das duas tias, sendo inserida numa realidade bem diferente da que encontraria na casa dos pais, tendo acesso a conforto e boa educação. Porém, embora tenha compartilhado o mesmo teto que os primos desde a infância, por muito tempo Fanny não foi tratada como igual. 

A posição inferior imposta a Fanny dá lugar a coibição exagerada que a menina carrega nos ombros, o que a impede de ter um peso decisivo na trama, como se espera de qualquer protagonista ativa e forte de Jane Austen. Chega-se a crer que Fanny está em segundo plano, alimentando uma paixão inalcançável pelo primo Edmund. Mas Jane e Fanny surpreendem. Na medida em que a história avança, compreende-se que Fanny não precisa esbravejar para que sua figura seja notada, tampouco para que sua personalidade, inteligência e ações influenciem o rumo da história que genuinamente passa a girar em torno dela.

Jane Austen realmente consegue surpreender – reitero aqui a surpresa – porque não permite que o leitor insinue o desfecho da história até que ela o apresente. Então, a autora se mostra ousada, pois além de explorar a mesquinhez alheia com a maestria anunciada nos livros anteriores, em Mansfield Park ela também aborda o casamento entre primos de classes sociais distintas e a traição conjugal – lembrem-se, os temas denotam em uma sociedade conservadora e aristocrática no início do século XIX; eis a ousadia de uma mulher que vence barreiras pelo simples ato de fazer literatura e de, através dela, expor os pormenores de uma sociedade aparentemente sem deformidades morais.

Com Fanny, Jane Austen rompe todo e qualquer preconceito social, pois essa protagonista se mostra superior às primas cujo discernimento e bom senso deveriam sobressair diante da menina frágil e de origem humilde; que alcançou estima graças ao caráter distinto da burguesia representada pelas senhoritas Bertram.