terça-feira, 25 de dezembro de 2007

↕Último Despertar

Seu sono foi interrompido pelo choro que ao longe perturbava e invadia seus sonhos. Era um choro abafado, intrigante e curioso. Sem nem perceber, já estava em meio ao corredor, com a face iluminada pela luz da lua que havia passado entre as finas gotas daquela chuva de outono, e que invadindo através da janela, quebrava a penumbra daquela triste noite, que reforçava ainda mais a escuridão e a melancolia que tomavam conta do velho casarão.Não havia nada que pudesse lhe tirar a estranha ligação que a guiava em direção a aqueles gemidos. Sem saber ao certo porque, reconhecia aquele pranto, e sentia as mesmas lágrimas choradas até então por um desconhecido, lhe cortarem a face, como que um pressentimento de que estava prestes a descobrir algo que mudaria toda sua existência, e que tudo o que havia aprendido e visto até aquele instante, de nada mais valeria, porque, sem nenhuma resposta, sabia que não iria mais precisar do seu passado e o futuro seria incerto para sempre, a partir dali. Todos esses pressentimentos e esses estranhos sentimentos a assustavam e a deixavam ainda mais perturbada.Na medida em que se aproximava dos gemidos, a chuva que antes era calma e serena, agora, estava forte e abafava ainda mais aquele pranto. Mas mesmo assim, pôde perceber que havia varias pessoas e não apenas uma como no inicio, e que enquanto uma se destacava pelo angustiante pranto, as outras murmuravam baixinho, como uma platéia, que de camarote, não queria interromper o espetáculo.Já avistava a opaca luz que vinha da capela, e a alguns passos de descobrir o que tudo aquilo significava, o choro que antes era abafado e contido, agora estava prestes a ser interrompido por um grito de dor e melancolia. Foi no exato momento em que se pode ouvir um assustador e agudo grito de NÃO, que segundos depois, foi repetido por ela como um eco, que ao se deparar com aquela cena, não teve outra reação se não dizer NÃO. A sutil diferença é que ao contrario do primeiro grito, o seu não foi ouvido por mais ninguém, além de si própria.Ao chegar à porta da antiga capela, se deparou com sua mãe debruçada em cima de um caixão desesperada aos prantos, molhando com suas tênues lágrimas o mesmo vestido que ela havia ganho semanas antes, e que pretendia usar no natal.Foi correndo até o caixão. Esbarrou no irmão que do lugar não se mexeu, passou entre os conhecidos e os desconhecidos, mas ninguém a viu. Gritava por ajuda, pedia explicações: “Mamãe, mamãe, o que houve?”... “Eu estou aqui não chores”. Era inútil, ela não existia mais.Estava em pé, ao lado da mãe, olhando perturbada aquela cena. Ficou olhando para si mesma dentro do caixão por um longo tempo. Estava pálida, tinha nas mãos entrelaçadas em cima do ventre, uma flor branca. Os finos fios dourados do seu cabelo haviam perdido a cor. Seus olhos agora selados por toda a eternidade, jamais voltariam a ver o nascer do dia seguinte. Ela não lembrava de nada, não sabia como, nem porque havia morrido, era apenas uma menina de 16 anos, que ao acordar no meio de uma noite qualquer, percebeu que nunca mais haveria pôr-do-sol.Ela se tornou uma alma esquecida, e tudo o que havia aprendido sobre inferno e céu, não fazia sentido algum, pois ela continuou vagando pelos cômodos da casa, para sempre. Talvez o paraíso fosse lá, ou o purgatório.Os dias foram passando, no inicio ela pegava alguém em algum canto da casa lamentando a sua ausência, e aquele pranto daquela última noite se repetiu incontáveis vezes, mas com o tempo se tornou cada vez mais raro, e as lembranças da sua existência foram desaparecendo com os anos, da mesma forma que seu rosto perdia a nitidez e ganhava uma cor amarelada, no retrato preso na parede da sala. Às vezes parecia que ela nunca havia existido. As pessoas seguiram suas vidas sem ela, o que a frustrava de tal forma que um dia cansou de tentar fazer com que alguém a ouvisse ou a visse. Ela demorou, mas entendeu que era inútil, pois você não vê o que não lembra e você não ouve o que já esqueceu.Os anos seguiram a lei do tempo. Todos morreram, todos. E ela nunca entendeu porque somente ela estava condenada a passar toda a sua eternidade na velha casa, que hoje é habitada por outra família, e ela sabe que virão outras e outras, tão iguais e tão diferentes desta e das que já moraram em sua casa. Ela também sabe que todos a deixarão e somente ela restará, pois todos a sua volta a deixam sozinha.Quem sabe um dia ela não desperte de um sono profundo com um choro perturbador de sonhos, e talvez tudo não tenha passado de um longo e triste pesadelo, e ela poderá usar o vestido no natal como havia planejado, e quem sabe fazer tudo aquilo que sempre desejou. Mas ela nunca mais adiará os planos por muitos dias, já que estes podem nunca vir a chegar, pois quem sabe este poderá ser o seu “último despertar”.

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